Filmes e séries ainda seguem utilizando atores cis para interpretarem personagens transgêneros, legitimando esse roubo de identidade
Por Lucas Holanda
Você provavelmente não gostaria que os outros lhe interpretassem de forma equivocada, retirando seus principais traços e personalidade. Mas isso acaba acontecendo, de forma natural e pouco debatida pela sociedade, em filmes e séries famosas quando um ator ou atriz cis interpreta uma personagem trans nas telinhas. Já pensou nisso?
É um problema que, na maioria das vezes, passa despercebido pelo público que acompanha filmes e séries. Ou seja, é um processo que, até o momento, está enraizado na sociedade, embora alguns movimentos estejam lutando para que a identidade dos personagens prevaleça e que essa inversão de papéis fique de lado.
Para se ter uma ideia de como boa parte da sociedade não se importa muito com o assunto, 70% das pessoas não ligam se um ator cis interpretar um personagem trans ou gay em um filme ou série. O dado é originado de uma pesquisa de 2018 feita na Inglaterra, realizada após várias críticas direcionadas ao humorista Jack Whitehall por ele ter aceitado topar um papel de um personagem gay em um dos filmes da Disney.
Preconceito que vem de séculos
Depois dessa rápida introdução sobre o tema, trazendo a abordagem para você entender toda essa problemática enraizada na nossa sociedade, é hora de te apresentar Matheus Ferreyra, trans não-binário e artista e publicitário, e que vai te fazer refletir bastante sobre o tema.
Estudante de teatro no Recife, Matheus afirma que o espaço é um local importante para o debate sobre a questão do ‘transfake’, que seria o fato de atores e atrizes cis interpretarem personagens trans nos filmes e séries. Além disso, ele explica como esse preconceito com cenas LGBTQIA+ vem desde o século 19.
“Essas cenas começaram de forma extremamente marginalizada e caricata. A imagem desse LGBT vem de forma cômica, que é o que a gente mais vê por aí, que é esse LGBT engraçado, que faz as pessoas rirem e é esse LGBT que tem espaço e que as pessoas aceitam”, explicou.
“O LGBT que fala sobre morte, vida e outros temas não têm visibilidade dentro da cena teatral e artística no geral. O grande problema aí é quando as dramaturgias continuam marginalizando travestis, pessoas trans. Hoje em dia LGB e os outros sem o T, têm ganhado visibilidade na arte. Porém, as pessoas trans ainda precisam lidar com a marginalização dos seus corpos dentro da cena artística”, completou Matheus.
Ei, eu sei que você está curioso para ver alguma apresentação de Matheus, então se liga nessa: a obra Espelhos, da série Entre Quatro Paredes.
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“Tenho a sensação de ser excluída”
Por conta dessa marginalização dos corpos de pessoas trans, esse processo de atores cis interpretarem personagens trans em filmes e séries acontece. Agora imagine como uma atriz trans deve se sentir vendo um hétero interpretar um papel que poderia ser seu? Para Elke Falconiere, travesti e atriz graduada em teatro pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a sensação é de uma exclusão que dói bastante.
“Tenho a sensação de ser excluída de um espaço que deveria ser meu. Me sinto roubada. Penso em quantas atrizes e atores trans não perdem a oportunidade de trabalharem, de desenvolverem suas potencialidades artísticas, de conseguirem chegar a outros lugares além daqueles que, socialmente, historicamente e culturalmente somos empurradas/os. Sinto que meu estudo, minha arte, meu trabalho e de tantas outras pessoas trans e travestis são desqualificados, porque nosso corpo incomoda ser visto”, explicou Elke.
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Para ela, a questão do transfake é de extrema importância, mas é um tema que cansa, sabe? Além disso, Sophia traz um ponto fundamental para essa discussão: a interpretação de atores cis em personagens trans fundamenta um discurso preconceituoso da sociedade, de que mulheres trans são homens vestidos de mulheres e vice-versa.
“É bastante triste ver a arte colaborando com isso. Ver a arte, que é um lugar em que as pessoas falam de liberdade de corpos e de expressão, mas infelizmente não incluem todos os corpos. Reproduzem o discurso preconceituoso da sociedade de que nós, sobretudo mulheres trans, são homens vestidos de mulheres, coisas que não somos”, explicou.
Sophia ainda revela que ela e outras pessoas trans já fizeram algumas reclamações, mas são criticadas, com a desculpa de que Sophia e os outros queriam tirar a liberdade do ator de interpretar o que ele quisesse. Porém, não é esse o objetivo quando se levanta essa pauta.
“O que a gente quer é que produtores, artistas e a sociedade nos vejam com outros olhos, como realmente nós somos, e não com uma visão criada por uma sociedade heteronormativa. Porque é isso que a gente vê quando um ator hétero cis interpreta uma pessoa trans no filme. A gente vê o que eles entendem que é ser uma pessoa trans ou travesti. E é sempre de modo agressivo. Somos interpretadas de forma promíscua e não falam da nossa dura realidade. Realidade de solidão, não afetiva e de ser rejeitada pela sociedade. Apenas glamourizam a nossa dor”, explicou Sophia.
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Trans precisam de oportunidades e protagonismo
Como Sophia explicou, atores e atrizes cis reproduzem a realidade de pessoas trans que eles interpretam, o que é claramente uma distorção de realidade. Não há como uma pessoa cis representar um trans na arte ou em qualquer lugar. Existem realidades e contextos que cada um vive no dia a dia que não podem ser ignorados, como detalha Elke Falcão.
“Vejo como a reiteração de um padrão excludente ao qual nós pessoas travestis e transexuais estamos submetidas. É transfóbica a ideia de um homem cis nos interpretando, pois se considera um que uma travesti ou mulher trans é um homem vestido de mulher. Ser travesti é algo que marca meu corpo”, afirmou a atriz.
“As pessoas consideram que não somos profissionais capazes de interpretar os mais diversos papéis: de dirigir, escrever, pesquisar. Espera-se uma narrativa viciosa de prostituição, tráfico e delito das nossas vidas. Geralmente essa estereotipização é o que é posto em cena por pessoas cis ao abordagem travestis e transexuais em suas obras”, completou.
Representatividade para mudar o cenário
A representatividade é o ponto chave para essa virada de chave nos filmes e séries. Existem pessoas trans capazes de assumirem papéis de protagonistas nestas produções e cabe aos produtores oferecerem oportunidade para eles. “A atriz trans precisa ser protagonista, como foi em Alice Júnior, no audiovisual de Anne que foi para Netflix. Essas pessoas precisam estar inseridas nos palcos como pessoas importantes e que façam a diferença na dramaturgia. E não apenas mais uma”, afirmou Matheus.
Na obra que Matheus cita, a personagem trans é interpretada por Anne Mota, que é mulher trans. A produção foi altamente elogiada por não ter algum ator cis interpretando a personagem, o que seria mais um roubo de identidade protagonizado nas telinhas.
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Anne, aliás, está concorrendo ao prêmio influencer do ano. Ela é bem ativa por meio de suas redes sociais, trazendo temáticas interessantes sobre o filme e a transexualidade. No vídeo abaixo, por exemplo, ela explica como esse processo do transfake acaba sendo bem prejudicial.
Não há necessidade do transfake
Atores e atrizes trans têm grandes talentos para assumirem qualquer papel. Portanto, manter conceitos tolos do passado é negar essa evolução da sociedade. E a arte, inclusive, tem um papel fundamental para que a sociedade consiga despertar algumas reflexões. O Movimento Nacional de Artistas Trans (MONART) é um grande aliado para que essa mudança aconteça. Além disso, claro, a consciência de pessoas héteros que se dizem aliadas para seguirem praticando o discurso e ajudando a combater a transfobia.
“O MONART sugere 30 anos sem a prática de transfake e eu acredito nisso. Vejo que as pessoas cis que se dizem aliadas precisam tirar isso da teroia e colocar na prática. Contratar pessoas trans e travestis para interpretarem os mais diversos papéis, além de investir em nossa formação técnica e acreditarem nas nossas potencialidades em todos os âmbitos”, finalizou Elke.
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