A História mostrou e mostra que o esporte – no geral – vem sendo usado como forma de aumentar a popularidade de governos extremistas. E o que fazer nesse cenário? Vem com a gente e descobre
Por Lucas Holanda
Mesmo que muitas pessoas ainda insistam em dizer que política e esporte não se misturam, a história mostra que essas atividades andaram e, mais do que nunca, andam lado a lado. Seja por meio de governantes extremistas que buscam apoio do povo por meio de ações populistas, pelo posicionamento de atletas ou até mesmo com clubes e entidades surfando na onda política que está no governo.
Você já deve ter ouvido dos seus pais ou familiares a seguinte frase: “Política, futebol e religião não se discutem”. Até parece! Mesmo que a sociedade tente esconder e passar essa neutralidade, todo mundo tem um posicionamento claro, seja na política, na religião, no esporte ou no que for. O jornalista e sociólogo Pedro Ramos diz que o envolvimento do esporte com a política acontece pelo simples fato de que um é o espelho do outro, respectivamente. “O esporte é um fenômeno sociocultural. É algo que reproduz muitas coisas da nossa sociedade, sejam eles pontos positivos ou negativos – como por exemplo o racismo velado. É algo que mexe com a sociedade”, explicou.
Se é um fenômeno que está tão ligado à população, por que existe esse discurso de que esporte e política não se misturam? Para Vilmar Santos, historiador e professor, esse discurso não passa de uma grande mentira, além de também ser preconceituoso e elitista.
“O esporte não é uma bolha. Tudo aquilo que a gente não discute acaba virando um tabu. E esses tabus são perigosos para qualquer sociedade. Tem muito esse discurso de neutralidade, mas é perigoso. É um discurso de quem quer transformar o esporte numa bolha, com o cara justificando que o futebol pode ser
homofóbico, ser racista e ter cantos fascistas. E isso é um problema e precisa ser combatido”, afirmou. Por meio de um mapa interativo especial, faça uma viagem no tempo e veja três momentos ao longo da história que comprovam que política e esporte estão interligados há décadas.
Por aqui, a história mostra como essas atividades estão juntas há décadas. Na ditadura militar, que durou de 1964 até 1985, generais se apropriaram do futebol em alguns momentos e usaram a Seleção Brasileira como grande ferramenta desse envolvimento do governo de extrema direita à frente do país.
Um dos exemplos mais marcantes é a Copa do Mundo de 1970. Na preparação para o Mundial do México, o Brasil voava dentro de campo sob o comando do técnico João Saldanha, o João Sem Medo, apelidado assim pelo mestre Nelson Rodrigues. Fora dos gramados, Saldanha não era querido por todos. Isso porque, além de treinador, ele também era jornalista e militante do Partido Comunista Brasileiro.
E, naquela época, o Brasil vivia anos duros com a violência legalizada, com torturas, desaparecimentos e mortes de perseguidos por um governo de extrema direita. No documentário ‘Memórias do Chumbo: o futebol nos tempos de Condor’, do jornalista Lúcio de Castro, um dos filhos de Saldanha conta que o pai levava documentos durante algumas viagens da Seleção para denunciar as violências que o exército brasileiro fazia contra a população no país.
Isso, claro, desagradava bastante o governo. Além das denúncias, os militares acharam outro motivo para demitirem Saldanha às vésperas da Copa: dois jogos ruins da Seleção diante de Bangu e da Argentina. Os militares conseguiram o que queriam depois de aumentarem a pressão sobre o treinador e ele acabou sendo demitido duas semanas depois de falar a frase: “Ele (Emílio Garrastazu Médici, presidente na época) escala o ministério, eu convoco a Seleção”. O comentário rolou porque Médici queria que Saldanha convocasse Dadá Maravilha, mas o técnico não queria.
No livro ‘Quem derrubou Saldanha’, escrito pelo jornalista Carlos Ferreira Vilarinho, em 2010, o autor detalha o que levou à expulsão do técnico. Em um dos trechos, o escritor afirma que a ditadura militar via na Seleção Brasileira uma forma de aumentar a popularidade, já que o futebol é uma grande paixão dos brasileiros.
Os militares já tinham influenciado no desempenho da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1966, então queriam um título no Mundial de 1970 a todo custo – mesmo que a lógica do esporte mostrasse o grande erro que era demitir Saldanha às vésperas da Copa do Mundo. Em seu lugar, foi contratado Zagallo que, na verdade, era a segunda opção, atrás de Dino Sani.
Pra frente Brasil, salve a Seleção?
De um lado, prisões, torturas e mortes. Do outro, uma ideia do Brasil unido, tendo no futebol a base para essa solidez populista. Para completar, um hino: Pra frente Brasil. Uma canção que virou tema da Copa do Mundo de 1970, sendo cantada por milhares de brasileiros.
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Para o historiador e professor Sérgio Salles, essa propaganda foi bem executada, já que o futebol mexe com os sentimentos da população – incluindo aqueles mais críticos e que tinham a noção do que realmente estava acontecendo no país.
Dentro de campo, na Copa do Mundo, o Brasil encantava. Pelé, Jairzinho, Gérson, Tostão e Rivelino… que timaço. Seu avô com certeza já lhe contou sobre como esses caras jogavam muita bola e como foram importantes para o Brasil conquistar o tricampeonato no México, em 1970.
E quem aproveitou esse título para aumentar ainda mais a sua popularidade? Isso mesmo, ele, Emílio Garrastazu Médici, general que estava no comando e era um homem com um alto nível de populismo. Não apenas por estar perto do futebol, mas também pelo propagado milagre econômico – que anos depois se mostrou uma super mentira, com a inflação vindo num trem bala na década de 1980.
Crédito El Pais
Durante a ditadura militar, a extrema-direita usou do futebol como um símbolo para aumentar o nível de popularidade e, claro, deixar de lado os crimes cometidos contra a dignidade humana. Mas por que isso aconteceu? Por que o esporte mais popular do mundo foi usado como espécie de escudo para quem torturava e matava? O historiador Dário Santos explica e traça um paralelo com as Copas do Mundo de 1934 e 1938.
Além da apropriação da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1970, os militares também se meteram em outras áreas do futebol, como por exemplo ajudando na criação do Campeonato Brasileiro a partir do Plano de Integração Nacional, desenvolvido por Médici.
Nos anos seguintes, inclusive, com o torneio ficando ainda maior, essa influência política nos bastidores aumentava, sobretudo com o partido Arena indo mal nas eleições. Quando o fracasso nas urnas ocorria, um novo clube entrava no Campeonato Brasileiro, como uma forma de atrair votos para o Arena, principalmente nos clubes pequenos do país.
Veja, através de outro mapa interativo, alguns estádios que foram usados pelas ditaduras na Argentina, Chile e Uruguai.
Democracia Corinthiana
Em maio de 2020, várias pessoas foram para a Avenida Paulista protestar contra o racismo e o presidente Jair Bolsonaro, que tomou e vem tomando medidas estúpidas em meio à pandemia do novo coronavírus. Em um dos cartazes, um claramente chamou atenção: Democracia Corinthiana. Você sabe o que foi isso? Já ouviu falar?
A Democracia Corinthiana foi um movimento que surgiu nos anos 1980, no qual tinha o fim da ditadura militar – que estava enfraquecendo – como principal bandeira. Nesse grupo, estavam jogadores famosos como o meia Sócrates e o atacante Casagrande – hoje comentarista do Grupo Globo. A dupla, juntamente com outros atletas do Corinthians, liderava este movimento que pedia o fim de um regime tão duro e que deixou marcas até hoje.
O clube, inclusive, passou a ser gerido de forma mais democrática, tendo decisões debatidas e poder de voto com o mesmo peso – seja do roupeiro ou treinador. Isso, aliás, contribuiu para que o clube fosse campeão paulista em 1982 e em 1983. No último título, por exemplo, os jogadores entraram com uma faixa no Morumbi, casa do rival São Paulo, dizendo: ‘ganhar ou perder, mas sempre com democracia.’
Além disso, os posicionamentos dos jogadores ajudaram na chamada do povo para grandes passeatas pelo Brasil afora pedindo a volta da democracia, como explica o historiador e professor de história Sérgio Salles.
“O Corinthians usa dessa força perante a sua torcida para pressionar por uma abertura mais rápida. A Democracia Corinthiana ajudou nesse processo, tendo Sócrates como essa figura que dialogava com a torcida, convocando a torcida para essas manifestações. Foi um capítulo importante para esse processo de redemocratização”, explicou.
Reprodução/Placar
Na verdade, a Democracia Corinthiana teve fim antes da volta da democracia. O principal ponto que enfraqueceu o movimento foi a não aprovação da Emenda Dante Oliveira, que teve apoio popular mas foi barrada pelo Congresso, o que fez Sócrates deixar o país e ir para a Fiorentina, da Itália, num ato de tristeza e cumprimento de promessa.
“No último comício das Diretas Já, prometi que se a emenda das eleições diretas fosse aprovada pelo Congresso, eu não sairia do meu país. A emenda não passou e eu me senti, além de absolutamente frustrado e chocado, comprometido a ir embora”, escreveu Sócrates no livro Democracia Corinthiana, escrito pelo jogador e pelo escritor Ricardo Gozzi.
Bolsonarismo e o futebol
Depois de ver a história e exemplos fora e dentro do país, chegamos no atual governo do presidente Jair Bolsonaro. Vamos ser sinceros que ele nunca foi uma pessoa ligada ao futebol, mas segue surfando na onda do esporte. A maior prova disso é que já usou camisas de diversos times, numa clara tentativa de continuar buscando apoio de todos os públicos. No linguajar futebolístico, quem veste a camisa de um rival mostra um alto nível de infidelidade.
Desde que se elegeu, Bolsonaro já usou do futebol tanto para benefício próprio como também para servir de barreira para algum aliado seu, como quando o presidente levou o então Ministro da Justiça, Sérgio Moro, para um jogo do Flamengo, em Brasília, logo após o site The Intercept vazar conversas do ex-juiz
tendo influências políticas na Lava-Jato.
Ou seja, esse é um grande exemplo de como Bolsonaro tratou o futebol como escudo para Moro usando a maior torcida do país e o clube mais popular do Brasil, que é o Flamengo, quando o então ministro estava sob forte desconfiança de grande parte da população brasileira.
Crédito - Foto Jorge William / Agência O Globo
Em meio à pandemia do novo coronavírus, o presidente, que minimizou os impactos da covid-19, foi um dos aliados do Flamengo para fazer uma pressão no retorno do futebol. Ou seja, era um alinhamento com o clube mais popular do país para pegar carona na maior paixão do brasileiro, numa forma de se blindar das merecidas críticas pelo tratamento que vem tendo durante a pandemia.
Além dessa pressão para a volta do futebol, Bolsonaro também assinou a Medida Provisória 984, que mudava completamente os moldes de transmissão do futebol no país. Mas, foi mostrado que essa MP foi apenas um brinquedinho para o Flamengo, que conseguiu utilizar isso no Campeonato Carioca, o primeiro a voltar meio à pandemia, e bateu de frente com a Rede Globo, emissora que o presidente
trata como inimiga. A MP, inclusive, caducou no Congresso Nacional.
Ouça o áudio do historiador e professor de artes Dário Santos explicando esse envolvimento de Bolsonaro com o futebol.
Apropriação da ‘Amarelinha’
Desde a sua campanha para ser presidente do Brasil que Bolsonaro usa do nacionalismo e da bandeira do país como símbolos a seu favor. Nas ondas de apoio para ele, inclusive, vemos um mar de pessoas com bandeiras do Brasil e, além disso, muita gente com camisas da Seleção Brasileira.
Para o estudante de jornalismo Henrique Viana, já há uma mancha nas cores da camisa da Seleção Brasileira. Mas ele acredita que, mesmo nesse cenário, o país vai conseguir superar essa onda nacionalista e voltar a usar a amarelinha sem se preocupar com isso.
“Quando todo mundo vestiu a camisa da Seleção para votar em Aécio, não me sentia mal. Quando teve os protestos contra a Dilma (em 2016), principalmente na Avenida Boa Viagem, via todo mundo vestindo a camisa da Seleção, comecei a me sentir mal ali, mas mesmo assim abstraí”, explicou.
“Na Copa do Mundo (de 2018), muita gente de esquerda vestindo a camisa da Seleção, eu vesti tranquilamente. Nas eleições veio o choque. Protestos pós-eleições também foram um choque. Então a princípio foi difícil usar a camisa da Seleção. Até hoje é, na verdade, mas acho que a gente tende a superar isso. Lógico que manchou, mas tende a passar”, complementou.
Crédito - José Cruz/Agência Brasil
Assim como Henrique, milhares de brasileiros se sentem incomodados com essa apropriação da camisa da Seleção Brasileira. Mas, por que há essa tomada de um dos símbolos mais importantes do país? Para o jornalista Lula Pinto, é um processo que vem de décadas passadas e que busca simplificar a cultura brasileira, como se ela fosse de apenas uma família e forma.
Ouça o áudio abaixo.
Uma das inspirações de Jair Bolsonaro, a ex-primeira-ministra da Inglaterra, Margaret Thatcher, também buscou no futebol uma forma de aumentar a popularidade do seu governo. Veja, através de um storymap, alguns atos da Dama de Ferro que prejudicaram o esporte.
Posicionamento dos atletas
Que o esporte e a política se misturam já foi dito, mas parece que hoje ainda não é muito aceito pelas confederações de esportes. Esses dias a jogadora de vôlei Carol Solberg recebeu uma multa de R$1.000, convertida em advertência, por ter gritado um ‘fora, Bolsonaro’ durante uma entrevista quando ainda estava na quadra, depois da etapa do Circuito Brasileiro de Saquarema, no Rio de Janeiro.
Para a maioria que soube do caso, a punição foi uma forma de censura pelo posicionamento. Mas, o que faz um atleta se posicionar politicamente? Existe um estágio da carreira em que ele para, olha e pensa: posso falar o que eu penso sem ser retaliado?
Para o jornalista e sociólogo Pedro Ramos, existe um ponto fundamental para entendermos essa questão do posicionamento dos atletas: contexto. Cada um foi criado dentro de sua própria realidade, o que faz com que sejam cabeças diferentes – por mais que tenham alcançado um nível de fama alto. Por isso, é
importante evitar fazer comparações sem entender tudo que envolve a situação.
“O contexto educacional pesa muito. Muitos desses atletas são pessoas que tiveram que abandonar a escola, então muitas vezes não tiveram acessos a muitos aspectos educacionais. E aí muitos atletas temem que isso possa afetar eles no dia a dia. Seja em relação ao salário, à torcida e a propostas de outros empregos. No mundo do futebol, inclusive, os assessores orientam seus atletas a não se
posicionarem. Existe uma dinâmica de que os jogadores são apenas corpos, e não seres pensantes, com senso crítico”, explicou.
Principal nome da Fórmula 1 atualmente e um dos maiores pilotos que já passaram no esporte, Lewis Hamilton vem se destacando pelos posicionamentos políticos. O automobilista, que é negro, abraçou a causa do racismo e vem levantando essa bandeira, seja com comemorações quando ganha, a cor do seu
carro e, claro, publicações nas redes sociais.
Imagem: Dan Istitene/Getty Images
Diante desse fenômeno ocasionado por Hamilton, boa parte dos brasileiros questionam o brasileiro Neymar pelo fato dele não se posicionar tanto politicamente, sobretudo na causa racista, já que também é negro. Essa crítica, aliás, também foi feita para Pelé, onde muitos acusaram de não usar do seu ‘poder’ para ajudar no combate ao racismo e se posicionar contra a ditadura militar.
Só que Pelé fez isso. E Neymar também vem se posicionando. Mas ainda existe essa pressão gigante de parte da sociedade. Para Pedro Ramos, não dá para comparar o nível educacional que o atleta brasileiro tem com o outro que está fora do país.
“Existe uma comparação entre atletas americanos e brasileiros sobre esse posicionamento, por exemplo. Mas é importante a gente entender os contextos sociais e políticos de cada país. Não é possível entender a nossa realidade através do ponto de vista americano, e vice-versa. Temos histórias diferentes. O aspecto educacional dos americanos, por exemplo, acaba influenciando mais nisso”, explicou o jornalista e sociólogo.
Imprensa ajuda a propagar que esporte e política não se misturam?
Nas grandes redações pelo Brasil, o perfil da maioria dos jornalistas que trabalham com esporte, sejam eles estagiários ou profissionais, é de pessoas brancas, classe média e heterossexuais. Não que seja errado estar encaixado nesses três aspectos, longe disso, mas mostra uma falta de diversidade em um
espaço tão necessário.
Isso pode ser uma das razões para que pautas que tentem interligar política e esporte sejam vistas como militância, quando na verdade são apenas reproduções de um contexto em que estamos inseridos. Então, o jornalismo, ainda mais o que está enraizado na grande mídia, acaba contribuindo para que essa distância entre dois temas fique maior a cada dia.
Para o jornalista Lula Pinto, é quase impossível acabar com esse padrão na mídia tradicional. Porém, a formação de novos profissionais com uma cabeça mais aberta é um novo caminho, buscando uma forma inovadora de se fazer jornalismo e que consiga cobrir esses temas de maneira ampla.
Trazendo um exemplo concreto de como esse jornalismo contribui para que parte da sociedade tenha o entendimento de que esporte e política não se misturam, podemos observar que, na visão do jornalista Tiago Leifert, o esporte não era lugar de manifestações políticas. O comentarista Caio Ribeiro, por exemplo, disse que o ex-jogador e diretor de futebol do São Paulo, Raí, tinha que falar de esporte, e não de política.
Para o jornalista e sociólogo Pedro Ramos, o segredo está em entender todo o contexto do esporte. Além disso, também fazer uma cobertura ampla e sem análises superficiais, focando muito no ‘campo e bola’, deixando muitas histórias boas de lado e, claro, a sociedade sem receber as informações.
“A imprensa brasileira tende a não dar muita atenção. Acaba focando muito nesse campo e bola, e acaba deixando de lado coisas boas. Existem muitas histórias boas de esporte e política que podem ser contadas, numa espécie de alerta para que a sociedade entenda cada vez mais para não repetir os mesmos erros do passado e até mesmo do presente”, explicou.
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