Por Paloma Almeida
As notícias falsas que se espalham rapidamente são, sem dúvida, um dos grandes problemas da sociedade atual. Com acesso amplo e fácil para criação e compartilhamento de informações que a internet trouxe, potencializado com as redes sociais, a tentativa de barrar as fake news se torna um trabalho duro e cansativo. Muito se fala sobre os danos que esse tipo de informação pode causar, mas pouco se sabe que esse problema não nasceu no século 21.
A União Soviética, comandada por Joseph Stalin, já fazia manipulação de imagens nos anos 30. Inimigos do governo ou funcionários que perderam a simpatia de Stalin simplesmente sumiram dos registros oficiais, inclusive das fotografias. Vários documentos oficiais soviéticos sofreram alterações para ocultar o ‘obscurantismo’ do regime e passar uma imagem próspera da URSS para a história.
Desafetos de Stalin removidos das fotos. Foto: The David King Collection at Tate
Antes da era da comunicação em massa, era fácil ficar impune. Várias atrocidades cometidas contra os judeus pelos alemães na Segunda Guerra foram desacreditadas por mentiras espalhadas na Primeira Guerra. Ficou confuso? Explico melhor: Entre os anos de 1914 e 1918, durante os combates da Primeira Guerra, a Inglaterra disseminou boatos de que soldados alemães eram capazes de atos terríveis, como tortura de crianças e mulheres, fazendo com que, anos depois, o holocausto passasse despercebido por um bom tempo.
O ator e diretor Orson Welles elevou o nível do problema das notícias falsas em solo americano. No dia 30 de outubro de 1938, uma transmissão musical na rádio é interrompida com essa informação: “Explosão de gases em Marte direcionaram nuvens tóxicas para o planeta terra”. A música retornou por um momento até ser cortada novamente. “Objetos estranhos foram vistos em Nova Jersey” continuou o apresentador. O que seria uma encenação criada pelo jovem Welles, uma adaptação radiofônica do romance “A Guerra dos Mundos”, do escritor Herbert G. Wells, acabou deixando o país em um estado de horror.
No dia seguinte à transmissão, a histeria tinha se multiplicado. Pessoas ligavam para a polícia dizendo ter visto extraterrestres em seus terrenos ou fumaça do suposto ‘gás tóxico’ vindo das explosões de Marte. Com a encenação descoberta, os jornais da época reafirmaram a falta de credibilidade das notícias da rádio. Anos depois do ocorrido, o próprio Welles afirmou que o real motivo da sua peça radiofônica foi atacar a mídia, o rádio em especial. Na visão do diretor, a sociedade dependia demais de informações vindas de um alto falante, muitas vezes sem nenhum critério de confiabilidade.
Ilustração da suposta invasão extraterrestre na edição francesa do livro de H.G. Wells
O trote de Orson Welles ganhou uma proporção astronômica numa época que a internet nem sonhava em nascer, e, mesmo que indiretamente, causou uma tragédia anos depois. Mais precisamente no dia 12 de fevereiro de 1949, no Equador, a rádio Quito transmitiu a peça, gerando um pânico em massa pela cidade. O exército chegou a ir para as ruas combater os invasores. Quando a população descobriu ser apenas uma peça radiofônica, invadiu e apedrejou a estação de rádio, ateando fogo no prédio depois. Seis pessoas foram mortas no ataque.
Mas, seja real ou imaginário, não há nada que o Brasil não possa adaptar, como explicarei em seguida. O ano era 1971 e, para comemorar o aniversário da Rádio Difusora, localizada em São Luís, no Maranhão, alguns locutores tiveram a brilhante ideia de adaptar mais uma vez a peça de Welles, porém, trazendo a história para a realidade maranhense. Ao contrário das reações internacionais, a população aqui achou que o mundo estava acabando, nem perceberam a parte da invasão alienígena. O comércio em São Luís fechou, inclusive o centro histórico, todo mundo correu para se trancar em casa e quem era taxista ganhou uma fortuna.
Em uma entrevista dada ao portal G1, Manoel José Pereira dos Santos, responsável pelos efeitos sonoros da rádio na época, disse que não sabia o alcance e o poder que tinha em mãos. “Não tínhamos o que fazer, foi uma brincadeira” relembrou ele. O resultado da brincadeira foi a invasão do exército na sede da emissora, que ficou fechada por três dias.
A história ocupou a primeira página do jornal ‘O Imparcial’ do dia 31 de outubro daquele ano.
Capa do jornal “O Imparcial”
O programa foi recuperado e a gravação pode ser conferida aqui:
Trazendo exemplos mais recentes na história, temos duas eleições que chamaram grande atenção da mídia pela estratégia massiva de compartilhamento de mensagens falsas nas redes sociais. As eleições americanas de 2016, que elegeram Donald Trump como o 45º presidente dos Estados Unidos, e a campanha eleitoral de Jair Messias Bolsonaro, eleito presidente brasileiro em 2018.
A campanha de Jair Bolsonaro usou de praticamente todas as mesmas táticas das eleições americanas, com a adição de um bônus dramático envolvendo uma facada e táticas para fugir dos debates com os outros candidatos. Assim como Trump, Bolsonaro preferiu as redes sociais, principalmente o Twitter, para enviar provocações aos adversários e usar contas falsas (os famosos bots) para compartilhar informações duvidosas e de fácil contestação através de seus seguidores. Os dois candidatos sempre questionaram a credibilidade do sistema eleitoral – obviamente apenas se tivessem a possibilidade de perder – durante a campanha, plantando a imagem de um sistema corrupto e incitando a polarização entre os eleitores de esquerda.
Como um exército automatizado, os perfis robôs existentes no Twitter cresce dia a dia, apesar dos esforços que a empresa diz investir para combater esse tipo de ação. Segundo nota oficial em resposta a questionamentos da Agência Pública, o Twitter ‘fez, só de janeiro à junho de 2019, a desativação de mais de 97 milhões de contas por apresentarem comportamento suspeito de spam.’ As notícia falsas não são um tipo novo de armamento, mas a internet e as redes sociais conseguiram transformá-las em artefatos ainda mais letais. As táticas utilizadas no início do século 20 ainda estão aqui, porém são disseminadas com muito mais rapidez, atingindo um número muito maior de pessoas. O ‘kit gay’, uma cartilha que seria distribuídas para as crianças, foi o termo mais procurado em 2018 segundo o Google Trends. Bolsonaro, seus filhos e apoiadores disseminaram o boato, que ganhou força em páginas evangélicas e grupos de WhatsApp. A cartilha, que na verdade seria um kit para promover igualdade de gênero nas escolas, mas teve seu conteúdo totalmente subvertido durante a reta final da campanha do atual presidente do país. A sociedade da década de 20 não tinha o acesso e o conhecimento dos jovens de hoje, porém exemplos atuais como esse confirmam que a checagem antes do compartilhamento da notícia não é a principal preocupação do leitor.
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