Muito antes de qualquer indício da pandemia e do cotidiano atual de protocolos sanitários no combate ao coronavírus, já existia no Brasil uma política histórica de distanciamento social. Um regime bem estruturado de apartheid moderno, que separa a sociedade entre brancos e pretos, distribuídos assimetricamente entre as pequenas concentrações de riquezas e os bolsões de pobreza do país.
O Brasil é o oitavo no ranking mundial de desigualdade social, atrás apenas de nações africanas, uma bruta herança do passado colonial, perpetuado até hoje.
Dados do Relatório mundial sobre índices de qualidade de vida, 2020.
Dentre as formas contemporâneas de se instituir essa desigualdade social, que, na realidade brasileira, se traduz também em uma desigualdade racial, a proibição das drogas é um bom exemplo de como a democracia no Brasil é algo inventado. Um levantamento feito pela Pública, ao analisar mais de 4 mil sentenças de primeiro grau para o crime de tráfico de drogas julgados na cidade de São Paulo em 2017, revelou que pessoas negras são as mais condenadas por tráfico, com menores quantidades de drogas apreendidas.

A política antidrogas brasileira
Raphael Esteves, historiador e atuante nos coletivos Marcha da Maconha Recife e Frente Estadual pelo Desencarceramento, afirma que para compreender como opera a política de drogas brasileira, é preciso voltar muitas e muitas casas para entender os limites legais que foram trazidos durante a colonização do país.
Ele explica que a lógica encontrou também no período de pós-abolição solo fértil para vigorar:
Essa é a mesma análise feita por Anna Beatriz Silva, vice-presidenta da Comissão de Advocacia Popular da OAB de Pernambuco, mulher negra e de realidade periférica. Para ela, a justiça do país faz parte de um processo de abolição que não se concluiu.
“porque ainda que as drogas sejam proibidas, corpos sociais hierarquicamente privilegiados vão fazer o uso dessas substâncias sem que haja nenhum tipo de consequência.”
Anna Beatriz

Necropolítica
Segundo dados do Monitor de Violência, iniciativa do G1 em parceria com com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Núcleo de Estudos da Violência da USP, em 2020, no Brasil, 78% dos mortos pela polícia eram negros.
Os dois entrevistados, separadamente, chegaram à uma conclusão: o que está em curso no Brasil, com a chamada “guerra às drogas”, é uma política de morte direcionada à população preta e pobre do país. Uma Necropolítica, afirma Anna Beatriz em consonância com o intelectual camaronês Achille Mbembe, que define o termo como “uso do poder social e político para decretar como algumas pessoas podem viver e como outras devem morrer”. A proibição das drogas, nesse contexto, é apenas uma faceta da antidemocracia vivida por determinados grupos sociais.

A advogada explica como o Direito brasileiro propõe essa seletividade penal:
“O que diferencia usuário de traficante por nossa legislação é pura e simplesmente o estereótipo social.”
Anna Beatriz Silva
Homens jovens, negros e periféricos são o perfil da pessoa encarcerada no Brasil, embora a realidade do encarceramento feminino seja exatamente a mesma. Na proporção em que a proibição acontece, o número de pessoas negras encarceradas dispara, uma incidência que superlota toda penitenciária brasileira e agrava a situação de insalubridade nesses lugares.

Hiperencarceramento de pessoas negras
No entendimento da advogada, esse fenômeno do “hiperencarceramento” também acontece por uma indisposição do estado em evoluir tecnologicamente para apuração de crimes mais graves, como homicídio. Como são mais fáceis de serem apreendidos, os crimes relacionados ao tráfico protagonizam os alarmantes números relativos ao cárcere no Brasil, refletindo uma ideia ilusória de saciedade, uma sensação de que o dever do estado está sendo cumprido. Assim, a política de enfrentamento às drogas pode até parecer eficaz, mas esta afirmação é, na verdade, uma das maiores falácias já produzidas neste país, já que não atinge seu principal objetivo, a diminuição do uso.
Raphael Esteves coloca que, se não é uma cela em condições subumanas, o que a política proibicionista de drogas reserva para populações negras e periféricas do Brasil é um cotidiano de terror, perseguição e extermínio.
Anna Beatriz diz que está na trincheira da advocacia popular – um espaço muito pouco ocupado dentro das áreas de atuação do Direito – pela asseguração mínima das garantias constitucionais dos indivíduos, mas também por uma questão ancestral, um propósito de vida. Para a advogada, a única saída possível em relação ao tema, é a legalização e regulamentação das drogas, que possibilitam um planejamento pautado na redução de danos, no lugar da punição seletiva. A advogada afirma com toda convicção que a questão das drogas é puramente uma questão de saúde pública, ao invés de segurança pública.
Para o historiador Raphael, não basta que as drogas sejam somente legalizadas. O saldo da política proibicionista de drogas, cujo custo humano é imensurável, necessita de políticas públicas que visem reparações financeiras e psicológicas para famílias que foram diretamente afetadas, seja pelo encarceramento, seja pela morte de parentes perdidos nessa guerra.