Provavelmente você já viu alguém em transição capilar enquanto rolava o feed do Instagram ou pesquisava vídeos de cabelo no Youtube. Talvez você mesmo esteja passando por este processo agora. Com certeza também notou que esses perfis se multiplicaram durante a pandemia. O isolamento, que acabou com a obrigação de eventos sociais, nos deixou mais tempo com uma versão mais natural de nós mesmos, sem muitas arrumações. Até porque, para que roupas tão apertadas, tanta maquiagem e fazer chapinha no cabelo para ficar em casa?
Longe do olhar de terceiros, ficou menos difícil aceitar quem somos e interiorizar a nossa beleza natural. Talvez nos faltasse, antes de tudo, uma oportunidade para olhar para dentro e entender nossa essência. Para meninas negras, grande parte delas faz química no cabelo desde criança, a tendência é renovar esse processo assim que o efeito do tratamento acaba e nesse meio tempo, não conseguem enxergar os fios na forma original. Quem sabe, para conseguir reconhecer e apreciar a beleza dos traços naturais, fosse necessário primeiramente resgatá-los? Um exemplo é a estudante de Medicina, Manuella Gomes:
Mas não é de hoje o anseio pela volta a um visual mais orgânico. Dados de 2017 já apontavam para um crescimento de 232% nas buscas por “cabelos cacheados” e 309% nas buscas de “cabelo afro” no Google. Mesmo com a maior procura, ainda é difícil assumir os cachos e libertar a beleza natural.
Mais alternativas
Outra forma de assumir a negritude na cabeça é através de tranças e dreads. Isabela Régis, fundadora do projeto Trançando Arte, passou a trabalhar nesse ramo com os dois irmãos, depois de ter sido demitida do emprego. Inicialmente motivada pela necessidade de uma fonte de renda, ela não imaginava que chegaria tão longe. levando representatividade para outras pessoas.

O contato com as tranças se deu na infância, com uma tia que sempre fazia penteados. “Acredito muito no diálogo com nossa ancestralidade, que já nascemos com o dom para, porém, a prática tem sua importância”, explica.
“O cabelo crespo, afro, durante muitos anos foi escondido, diminuído. Não que hoje não seja, porém, com a diáspora africana, essa estética ficou ainda mais fortalecida para não mais esconder a verdadeira identidade. Enxergamos em nosso trabalho um compromisso de manter essa relação estabelecida: o cabelo, a autoestima e o reconhecimento dentro do contexto. Optar por uma trança ou dread é um ato de se reconhecer enquanto raça”.
Isabela Régis, fundadora da Trançando Arte
Entretanto, o público do Trançando Arte não é majoritariamente negro. Isabela costuma conversar com os clientes para entender o que os levou a estar ali. Qualidade do trabalho, identificação e preferência estão entre os principais motivos. “Infelizmente ainda tem pessoas que julgam como moda e procuram por esse fim”, conta a fundadora. “Temos um público grande de negros buscando nossos serviços, o que nos conforta. Saber que hoje podemos levar aos nossos o que por tanto tempo foi evitado já nos engrandece”, reconhece.
A quebra de estigmas até hoje associados às tranças e penteados afro em geral também é uma realidade que pode gerar discriminação e preconceito, com consequências psicológicas e até financeiras: “Infelizmente, ainda existem estabelecimentos de trabalho que não aceitam ou desdenham simplesmente pelo visual”. Por isso, reafirmar o papel da aparência muito além da estética é uma questão visceral. “Estamos vivendo anos de libertação, é assim que definimos. Tudo sempre foi uma questão de representatividade. Enquanto não tínhamos representantes, não havia esse despertar. Ainda estamos engatinhando, mas já temos grandes conquistas”.
E, quem assistiu ao Big Brother Brasil 2021 (alguém não assistiu? sério?), deve ter achado este último parágrafo um tanto familiar. Era sobre isso que o apresentador Tiago Leifert estava falando ao se referir ao cabelo do participante João Lucas. Não é só cabelo. Tem uma carga cultural, histórica, dolorida e orgulhosa, com muito maior entre os cachos de cada fio enrolado.
E, como o BBB 21 pautou diversas questões raciais, não poderíamos deixar de citar a finalista Camilla de Lucas ao falar de maquiagem e pele. Muito antes de entrar no reality, um vídeo da youtuber já denunciava a dificuldade de encontrar produtos de beleza para tons de peles mais escuros.
Viviane Nascimento, maquiadora especializada em pele negra, decidiu restringir seu nicho de estudos e atuação depois de anos encontrando dificuldade para aprender a se maquiar: “os cursos que fiz não me ensinaram nada da minha especialidade, foi muito na prática e estudando na internet”.

Pensando nisso, ela dá aulas de maquiagem para peles negras com o intuito de que seus alunos “não batam tanto a cabeça”. “Quero passar para eles tudo que aprendi, para que eles não levem tanto tempo de estudo assim como eu e já possam colocar em prática”, afirma.
Mesmo lembrando que cada rosto tem suas características e não é interessante padronizar, a maquiadora aponta algumas dicas para ajudar a melhorar o trabalho (maquiadoras de plantão, peguem o caderninho): investir em produtos específicos para o tipo de pele, não aplicar as mesmas técnicas de pele clara, preparar a pele anteriormente e estudar sobre a área de atuação.
Uma das dicas que ela dá no Instagram (@vivianemakeupp) é sobre o ‘efeito cenoura’, que às vezes acontece quando se tenta evitar que a maquiagem fique acinzentada, o que ocorre com várias pessoas de pele negra. Segundo a especialista, o truque do corretivo laranja para não acinzentar só funciona bem para aqueles que têm o subtom na cor laranja em evidência. Um corretivo muito claro, selado com um pó muito mais escuro também pode gerar essa impressão.
Apesar disso, Viviane relata que o cenário vem melhorando. Segundo ela, há algum tempo atrás não era tão fácil o acesso a esses cosméticos, hoje as marcas estão enxergando esse público.
Uma visão científica
A falta de representatividade não só influenciou a visão de pessoas negras sobre o que é bonito ou desejado, mas também afetou o acesso deste grupo a profissionais preparados para lidar com suas especificidades. E foi por essa razão que a dermatologista Camila Rosa decidiu direcionar seu trabalho a esses tipos de pele: “queria prestar um atendimento mais direcionado pensando em meus pacientes, porque via que não era um conhecimento amplamente estudado e difundido na área”.
Dermatologista Clínica, Cirúrgica, Estética e Oncológica, a médica comanda o Setor de Pele Negra do centro especializado DermaColor, em São Paulo. Camila explica que, por causa do alto índice de melanina, existem particularidades na hora da manifestação de lesões que exigem um cuidado maior nos procedimentos. Por isso, algumas dúvidas foram esclarecidas para tornar o autocuidado mais acessível.

Mito ou verdade?
Algumas doenças são mais recorrentes em peles negras
Verdade. “A foliculite, alopecia por tração, queloides, são algumas doenças mais comuns na pele negra. Ao passo que o câncer de pele, rosácea são menos incidentes”, afirma a dermatologista.
Peles negras aparentam demorar para envelhecer
Verdade. “Como a radiação ultravioleta é uma das grandes responsáveis pelo envelhecimento, a pele negra tem a vantagem de ter mais melanina, isso faz com que a radiação ultravioleta seja filtrada pela melanina”, justifica Camila. Ou seja: menos oxidação, menor velocidade de envelhecimento.
Peles negras têm mais resistência ao sol e não precisam de FPS alto de proteção?
É verdade que tem maior resistência, pela maior quantidade de melanina, porém é mito que não precisa de protetor solar. A médica adverte que o fator de proteção no mínimo deve ser 30.
Esse espaço também é deles
É comum que uma tendência machista nos leve a associar beleza como um tema feminino. Moda, cabelo, maquiagem e estilo nunca foram monopólio das mulheres. E, agora, com homens negros cada vez mais conscientes e empoderados da sua estética como uma expressão de si, eles vão ocupar ainda mais espaço.