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Diversidade na ciência: antes tarde do que nunca

Enedina Alves Marques/ reprodução: PET Elétrica UFBA

Você sabe quem é Enedina Marques? Não? Para entender melhor a importância dessa mulher, pense no contexto do Brasil na década de 40. Um país que havia abolido a escravidão somente 52 anos antes e permitido o voto feminino somente em 1932. Foi diante dessa realidade que a paranaense Enedina Alves Marques decidiu, em 1940, seguir seu sonho e ingressar na Faculdade de Engenharia da Universidade Federal do Paraná para, cinco anos depois, graduar-se  como a primeira mulher negra engenheira do Brasil.

76 anos depois, importantes avanços foram conquistados no sentido de ampliar a  diversidade nos ambientes acadêmicos brasileiros. Políticas públicas afirmativas, como a Lei de Cotas, ajudaram o país a conseguir passos expressivos no trajeto por equidade, transformando a “cara” das instituições de ensino superior.

Ainda assim, a presença negra é minoria nas  universidades, consequência direta de um dos mais graves sintomas do racismo estrutural que ainda vigora no Brasil. Pense bem, quantos professores negros você teve ao longo da sua graduação ou nos tempos de escola?

Um levantamento recente, feito pela Liga de Ciência Preta Brasileira (LCPB) mostra que apenas 15,4% dos alunos de pós-graduação do país são pretos ou pardos. Rejane Pereira é uma dessas. Historiadora e doutoranda em Ciências da Religião, ela entende que a Lei de Cotas ofereceu uma nova possibilidade para os negros, mudando o cenário do ambiente acadêmico e construindo um passo sólido na busca pela igualdade racial.

O acesso do povo negro à universidade, garantido por meio de lei, provocou  profundas mudanças e um processo de conscientização no espaço científico. A formulação e criação do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi) da Universidade Católica de Pernambuco,  bem como de outros núcleos semelhantes em diferentes universidades, são  um retrato desse avanço, já que o espaço tem como objetivo articular e promover atividades de ensino, pesquisa e extensão, de caráter interdisciplinar, voltadas para avaliação e acompanhamento da implantação das Diretrizes Curriculares para a Educação e Relações Étnicorraciais e Ensino de história da África e da cultura Afrobrasileira e indígena.

Padre Clóvis Cabral, é o atual coordenador do Núcleo e explica o papel do Estado nessa caminhada pela equidade racial no ambiente científico.

Padres Clóvis Cabral

A falta de diversidade na ciência

A falta de diversidade na ciência pode, inclusive, impedir  a humanidade de atingir alguns avanços científicos. Por exemplo, para algumas doenças que acometem com maior incidência a população negra e ainda não foram produzidas vacinas. 

Jackson Augusto

Conhecido nas redes sociais como “Afrocrente”, Jackson Augusto é um ativista e articulador do movimento negro evangélico em Pernambuco e acredita que só com uma pluralidade de atores na ciência será possível expandir também nosso conhecimento.

“Impede porque a gente tá tirando aí um ator político que é importante para a análise, então a gente só tá escutando uma narrativa. Em ciência ela precisa ser o mais ampla possível, inclusive nas discussões pra gente conseguir chegar a soluções, pra conseguir chegar a um desenvolvimento, então se a gente tirar o conhecimento e as epistemologias construídas por pessoas negras no Brasil e no mundo, a gente não consegue entender a colonização, a gente não consegue entender o Brasil de hoje, a gente não consegue entender muita coisa.” 

Jackson Augusto.

Padre Clóvis Cabral segue pela mesma linha de pensamento de Jackson e crê que a ciência só tem a ganhar com uma maior diversidade.

“Não somente nesse aspecto, por exemplo a doença falciforme, é uma doença que atinge, se sabe hoje a maioria das pessoas com a doença são negros e negras, mas não deve ser, assim que os médicos negros, que os pesquisadores negros e negras só pesquisem temas referentes aos negros, não! Quando você impede uma parte importante da população de ter acesso de educação formal, pública e de qualidade, também universitária, você impede que uma parte da inteligência, da criatividade, possa tá a serviço de todo o mundo, quando você impede que negros e índios tenham acesso a universidades públicas você tá impedindo que a ciência cresça, porque a ciência precisa de mais gente, de mais pessoas que tenham vocação pra pesquisa, quanto mais você tiver pesquisadores plurais, quanto mais a pesquisa for plural sobre temas vários, quanto mais existir pesquisadores negros, indígenas, do norte, do nordeste, em contato com pesquisadores, pesquisadoras latino-americanos, caribenhos, asiáticos, você amplia a ciência e todo mundo ganha”, explicou.

Padre Clóvis

No Brasil, os docentes negros são menos de 15% do total (LCPB) e isso gera consequências diretas, inclusive no conteúdo transmitido aos alunos. Para Robson Telles, professor do Departamento de Letras da Universidade Católica de Pernambuco, já houve um avanço significativo, mas ainda é preciso efetivar melhores medidas de acesso e produzir ferramentas de manutenção dos negros nas universidades.

IMPACTO SOCIAL

Rejane Pereira

O impacto social causado pela presença dos negros nos ambientes acadêmicos é incomensurável. Tanto no fortalecimento da produção científica com visões plurais, como já foi destacado anteriormente, quanto em novas descobertas geradas a partir das vivências do povo negro.

“É que uma negra ou negro chegando a universidade, ele traz outros negros e outras negras, um sobe e puxa o outro. Uma outra é porque nós falamos por nós, não adianta tá um branco ou uma branca na universidade, ela pode até fazer a defesa, mas na hora da discussão, ela não vai reconhecer o privilégio do branco, é muito difícil. E vai nos colocar em um local que a sociedade não quer que a gente esteja, que é o lugar de protagonismo. O lugar de falar pela gente, a população negra passou muito tempo com alguém falando por nós, hoje nós já produzimos conhecimento, nós já falamos por nós. Um outro impacto que sinto é porque nós estamos em um lugar que a sociedade nunca nos deu, eu estou nesse lugar com muita luta, aí eu volto ao movimento negro que é o movimento educador. Então, o primeiro impacto é esse: eu chegar na universidade, o outro impacto é saber que eu posso produzir conhecimento e o outro impacto é que eu chegando outras mulheres negras chegam e o de que nós sempre falamos por nós, mas éramos ouvidos nem ouvidas”

Rejane Pereira

Apesar de todo o avanço, uma das medidas cruciais para a presença do negro na ciência está ameaçada. A lei que prevê cotas para ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio deverá ser revista em 2022, quando completará dez anos de vigência, o que vem causando temor na comunidade científica representada aqui pelas falas do ativista e articulador movimento negro evangélico em Pernambuco Jackson Augusto. 

O Coordenador do Neabi da Unicap, Padre Clóvis Cabral acredita que há um projeto político desinteressado no avanço da ciência no Brasil, portanto, além de tudo, ainda é necessário superar as adversidades ocasionadas por quem deveria ser o maior incentivador do progresso científico do país. 

“Nesse momento o grande desafio é derrotar o projeto político do Bolsonarismo, você sabe que o projeto representado por Bolsonaro e sua trupe é um projeto de negação da ciência, eles são negacionistas, eles não creem no valor da ciência como mediação fundamental pra gente transformar o mundo, mudar o mundo, tornar um mundo um lugar melhor pra de viver. Eles são terraplanistas, imagine?? Eles propagam que a terra é plana, eles negam aquilo que a ciência já sabe. A terra é uma esfera, é redonda, mas eles dizer que não, que a terra é plana, então assim tem que derrotar esse projeto de sociedade que é obscurantista, é anticientífico, negacionista, terraplanista e é um necroprojeto, uma necropolítica, uma política que produz a morte. A gente tá vendo aí, vamos chegar a marca de 450.000 pessoas mortas pela covid, isso fruto desse obscurantismo”

Padre Clóvis

AUSÊNCIA DE AUTORES NEGROS NAS BIBLIOGRAFIAS ACADÊMICAS

A falta de autores e referências negras em ambientes acadêmicos ainda é uma triste realidade e evidenciam o fato de que o país ainda está distante na caminhada pela igualdade racial. Marina Feldhues é fotógrafa, mestre e doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco, também coordena o Grupo de Estudos Narrativas Anticoloniais e acredita que a realidade acadêmica reflete a estrutura em que se vive.

Marina Feldhues

Segundo Marina, essa lacuna de autores negros nas bibliografias das universidades ocasiona um retrocesso no pensamento científico danoso ao conhecimento.

Principalmente no campo das humanidades, as humanidades são pensadas a partir da branquiture. A partir do que a branquitude pensa, e ai os alunos, inclusive alunos negros escrevem e são obrigados a refletir e pensar a vida social a partir do pensamento do branco e não a partir de si próprio porque os autores negros não são lidos nas universidades” 

Marina Feldhues

Doutor em Estudos Linguísticos e professor universitário, Kleber Aparecido da Silva reforça a importância de autores negros na ciência ao criticar a situação atual no cenário brasileiro.

Robson Teles

O também professor universitário Robson Teles destaca que o curso de Letras também sofre com a ausência da perspectiva de autores negros nos livros que são passados aos alunos e isso já é uma realidade que já vem impregnada desde o ensino básico na escola.

“Nós temos uma formação profissional muito eurocêntrica e nesse eurocentrismo a gente estuda pouquissímos teóricos que sejam negros porque a intelectualidade, pelo menos na minha área, carece muito de negros produzindo, isso vem acontecendo mas ainda é lento, quando eu digo que é lento, é porque a gente discute, mas a gente precisa de mais prática do que discussões. Em relação aos autores negros eu lamento muito porque no curso de Letras de maneira geral, a gente tem muito o elemento canônico e o elemente canônico não é um elemento que trabalhe muito com o negro, a gente teria Machado de Assis, Lima Barreto, os clássicos. Quando chegamos no contemporâneo, como por exemplo uma Odaílta Alves e Solano Trindade, eles não são conhecidos. Há um desconhecimento muito grande dos autores negros contemporâneos, para esses autores literatos que tem contado a história de uma outra forma, também na literatura, porque literatura é registro da passagem do homem pelo mundo. Quando a voz negra não tá colocando sua poética, olhando o mundo, traduzindo o mundo em sua poesia, em sua prosa, em sua arte da palavra, aí a gente tem uma diminuição enorme de conhecimento”

Robson Teles

A REALIDADE DO AMBIENTE ACADÊMICO

Kleber Aparecido da Silva

“Eu acredito que a academia, a universidade, a escola de uma maneira geral, tem muito o que aprender com esses pensadores negros”

Kleber Aparecido da Silva

Apesar de existirem inúmeros intelectuais negros que já produziram e que estão produzindo conhecimento, a academia ainda é muito restrita aos mesmos intelectuais, o que prejudica a produção do saber e impede o avanço do próprio ambiente acadêmico como reforça o professor Kleber Aparecido da Silva.

“Eu acredito que em todas as áreas do conhecimento, seja ela área de humanas, exatas, biológicas, da natureza, eu acho que nós temos pensadores negros e infelizmente, muitos de nós desconhecemos esses pensadores negros, né, então eu acredito que a academia, a universidade, a escola de uma maneira geral, tem muito o que aprender com esses pensadores negros. Então o que eu acredito é que, acredito não, tenho certeza de que nós temos muito o que aprender com os pensadores negros. Infelizmente ainda, né Yuri, quando se fala de pendadores negros as nossas visões são muito limitadas, por exemplo, na geografia a gente pensa em Milton Santos que foi professor da Usp, quando fala por exemplo na linguistica, quando fala da antropologia, por exemplo com os estudos socio-culturais, a gente pensa em Stuart Hall e quando fala da literatura a gente pensa em Machado de Assis. Então, o que eu acho, na minha opinião é que precisamos desvendar justamente esses intelectuais negros, sejam eles da antropologia, medicina, direito e assim por diante, porque há muitos, mas infelizmente a gente não ouve. Esses corpos foram silenciados. 

Kleber Aparecido da Silva

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