Sem a garantia de equidade racial, é impossível se falar em democracia plena. E sem compreender o passado, é igualmente impossível discutir um modelo de sociedade mais justo. O racismo, herança persistente da exploração colonial, é a maior chaga do Brasil. Trezentos anos de escravidão marcaram para sempre a sociedade brasileira, fazendo perpetuar uma estrutura que se atualiza apesar da modernidade.
O termo “lugar de fala”, popularizado pela obra da filósofa e escritora Djamila Ribeiro, é recorrentemente utilizado para concentrar a responsabilidade das questões raciais nos grupos de pessoas não-brancas, diretamente atingidas pela estrutura racista. Assim, o termo funciona muitas vezes como um escudo, uma esquiva. Blindadas pelo não pertencimento, pessoas brancas tendem a se isentar dessa discussão, e essa não implicação é extremamente nociva para o enfrentamento efetivo ao racismo.

É preciso investigar com mais atenção essa identidade que tem o poder histórico de nomear o “outro”. A psicóloga e produtora cultural Ana Catarina Régis explica como se configura os significados e sentidos de “ser branco” compartilhados em nossa cultura e o que essa identidade subjetiva:
A psicóloga afirma que essa experiência do ser branco, além de possuir automaticamente atribuições de características morais, intelectuais e estéticas, é um processo que se inicia intraútero, desde o início da existência do sujeito. No entanto, a branquidade não é facilmente percebida como uma categoria racial, mas como a norma a partir da qual as outras raças se desenham.
Dentro dessa estrutura que se beneficia do racismo, que é lugar de privilégios simbólicos, subjetivos e objetivos, existe uma dificuldade secular em se perceber na dinâmica de poder. No Brasil, principalmente, com o mito da democracia racial e tantos outros fatores históricos que contribuíram para a perenização da prática, o racismo é algo que todo mundo admite existir, mas que ninguém aceita que pratica.
Para Ana, é preciso colocar uma energia ativa e propositiva no processo de desmanche desse referencial historicamente centrado no branco.
De fato, não é confortável encarar uma ancestralidade colonial, escravocrata, mas é necessário e urgente. E o mais importante: é uma tarefa da própria branquitude levantar informações fora da hegemonia epistemológica, escrita somente por pessoas brancas sobre seus feitos heróicos, e descortinar essa realidade inventada sobre a superação de um problema que somente se recicla.
A psicóloga, que também atua na construção da Marcha da Maconha Recife e da Rede de Feministas Antiproibicionistas (RENFA), ambos movimentos sociais que pautam as estruturas do racismo dentro da proibição das drogas e do aborto, enfatiza que acessar a discussão do racismo e da braquitude enquanto estruturas é também acessar um instrumento de mudança, a consciência.
Em contato com a literatura e as artes, Ana Catarina indica algumas produções que podem provocar reflexões importantes acerca do assunto.
LEITURAS:

A partir do que a autora traz sobre racismo da perspectiva da mulher negra, dá pra pensar sobre a branquitude também, principalmente em relação ao lugar da mulher branca dentro dessas questões. Mulheres, raça e classe, de Angela Davis, é uma obra fundamental para se entender as nuances das opressões. Começar o livro tratando da escravidão e de seus efeitos, da forma pela qual a mulher negra foi desumanizada, nos dá a dimensão da impossibilidade de se pensar um projeto de nação que desconsidere a centralidade da questão racial, já que as sociedades escravocratas foram fundadas no racismo.

A autora é uma mulher negra, psicóloga e teórica portuguesa, que fez muito da sua carreira na Alemanha. A partir da construção de uma narrativa centrada em mulheres negras, também dá pra tirar reflexões sobre o papel da pessoa branca dentro de sociedades eurocentradas. Memórias da Plantação é uma compilação de episódios cotidianos de racismo, escritos sob a forma de pequenas histórias psicanalíticas. Das políticas de espaço e exclusão às políticas do corpo e do cabelo, passando pelos insultos raciais, Grada Kilomba desmonta, de modo incisivo, a normalidade do racismo, expondo a violência e o trauma de se ser colocada/o como Outra/o.

Essa indicação trata exatamente sobre o tema branquitude na sociedade paulistana, e é interessante porque traz também uma reflexão sobre o Nordeste e o colorismo dentro da própria branquitude. O livro compreende quais os pressupostos falsos ou imaginários sobre a raça – quando esta, do ponto de vista biológico, não existe – passaram a ser efeitos concretos tão poderosos que regulam práticas cotidianas, percepções, comportamentos e desigualdades entre diferentes grupos humanos.
FILMES
Sinopse: É o início dos anos 1970, uma época de grandes convulsões sociais à medida que a luta pelos direitos civis continua. Ron Stallworth (John David Washington) torna-se o primeiro detetive afro-americano no Departamento de Polícia de Colorado Springs, mas sua chegada é recebida com ceticismo e hostilidade aberta por parte do departamento. Destemido, Stallworth resolve fazer um nome para si mesmo e uma diferença em sua comunidade. Ele bravamente parte em uma missão perigosa: infiltrar e expor a Ku Klux Klan.
Sinopse; baseada no livro homônimo de Salomão Polakiewicz Em M8 – Quando a Morte Socorre a Vida, Maurício (Juan Paiva) acabou de ingressar na renomada Universidade Federal de Medicina. Na sua primeira aula de anatomia ele conhece M8, o cadáver que servirá de estudo para ele e os amigos. Durante o semestre, o mistério da identidade do corpo só poderá ser solucionado depois que ele enfrentar suas próprias angústias.
DISCO E MÚSICA

Esse é um grupo de rap paulista do fim dos anos 80 que traz muitas experiências do que é estar em contexto de vulnerabilidade, o que é estar em contexto de periferia no Brasil. A gente sabe que a realidade não se alterou muito.

Sobrevivendo no Inferno é o quarto álbum de estúdio do grupo brasileiro de rap Racionais MC’s, lançado pelo selo da gravadora Cosa Nostra em dezembro de 1997. É considerado o álbum mais importante do rap brasileiro.
“Essa música acho interessante indicar porque Belchior, que era nordestino, traz um pouco dessa “ficção Nordeste” que foi criada, que tem muito a ver também com uma questão da raça social e do colorismo na branquitude. Traz também uma ideia de juventude com voz mais ativa, uma juventude que identifica que tem algo de muito errado na nossa sociedade.”
Ana Catarina Régis