Dados de uma pesquisa sobre empreendedorismo negro no país, fruto de uma parceria entre PretaHub, Plano CDE e JP Morgan, mostram que cerca de 51% dos empreendedores no Brasil são pretos ou pardos, e essas pessoas chegam a movimentar R$ 1,7 trilhão por ano.
Por um empreendedorismo feminino que fale com todas
Sabe quando gosta de uma coisa, se interessa por ela, é preparada para atuar com aquilo, mas sente que o ambiente ainda é pouco receptivo para você? De certa forma, foi o que aconteceu com a publicitária Assussena Oliveira, responsável pelo perfil Mana Preta no Instagram. A conta, que dá dicas e oferece consultoria de Marketing Digital para mulheres negras, surgiu em junho de 2018, quando ela percebeu que muitos perfis falavam de empreendedorismo feminino, mas sem abraçar a mulher negra empreendedora.

“Resolvi falar de marketing e afroempreendedorismo com o intuito de levar conhecimento de de uma forma mais didática e também com representatividade para mulheres negras empreendedoras, devido à falta de oportunidade no mercado ser ainda maior para nós”, lembra Assussena. Seu principal público, mulheres negras empreendedoras, a maioria começando o seu negócio agora, busca criar bons conteúdos que possam se converter em vendas através do Instagram.
A publicitária nunca havia pensado em uma perspectiva de negócio, apenas queria dar dicas e criar conteúdos interessantes inicialmente. Sua visão mudou quando um professor sugeriu que vendesse seus conhecimentos.
“Ser mulher no país que a gente vive não é fácil, não. E ser mulher negra empreendedora ainda é mais difícil porque sempre temos que ser melhor três mais do que qualquer outra pessoa, devido a questão do racismo estrutural.”
Na experiência de Assussena, as dúvidas e julgamentos mais desmotivadores vêm de perto. “Quando você larga uma faculdade ou um trabalho de carteira assinada para ser a sua própria chefe, as pessoas da família são as primeiras que vão julgar, isso acontece com a maioria. Até a autorização para análise de crédito nas principais instituições financeiras, a burocracia é ainda maior para uma mulher negra empreendedora. Não sofri descriminação diretamente em relação a escolher empreender, mas a gente percebe no olhar, principalmente de alguns parentes da família. Isso é o pior, e o que mais desmotiva”.
“Acredito que mulheres negras que decidem empreender para si mesma, estão indo pra esse lado não só por necessidade, mas sim para ocupar espaços de poder. Esse é o propósito da minha página, ocupar espaços de poder”.
Ela ainda não consegue se manter apenas com as consultorias e trabalha via CLT, graças a uma certa insegurança de largar tudo e só focar no projeto Mana Preta: “porque, como eu disse, não posso contar com família, então quando vir que consigo me manter bem só com o empreendedorismo, largo tudo”.
Representatividade importa
Os seres humanos aprendem por modelagem, como explica a psicóloga Paola Stephani. Ou seja, olhar, imitar e observar referências constroem parte importante do que somos. Esse é um dos motivos que torna importante a representatividade de pessoas parecidas conosco em lugares para que nós possamos nos ver ali. É também por isso que ela alerta para esse comportamento em ocasiões ainda mais banais, como as pessoas que decidimos acompanhar nas redes sociais.
Por que consumir de pessoas negras?
“Tenho tranças feitas por mulheres negras, justamente porque só elas sabem fazer, conhecem a fibra do nosso cabelo e entendem a carga histórica que tem”. O relato da estudante de Direito Shede Soares retrata o sentimento de pessoas negras que fazem questão de comprar produtos e serviços com quem sabe como é estar naquela pele: “o que é bom de você consumir de pessoas negras é que elas entendem exatamente sua necessidade, você não tem que explicar”.
Na visão dela, o mercado segue tendências majoritariamente eurocêntricas. “É como se pessoas negras fossem a exceção e o mercado fosse preparado para quem mais consome, que seriam os brancos”. Então, quando você vai para um salão especializado em cabelo crespo ou cacheado, aquilo é feito pra você. “E isso é uma coisa que a gente sente falta em outros serviços. Representatividade”, lamenta.
Não só Shede mas a maioria das mulheres negras sabe que cremes de cabelo e cosméticos vendidos ‘para todo tipo de cabelo’, na verdade não são. “São para todos os cabelos que tenham fibra lisa. Maquiagem também. Falam que um pó ou blush é para todos os tons de pele, mas só funcionam para os tipos de pele brancas ou amareladas. Mas quando você passa numa pele negra, fica cinza”, conclui a estudante.
Mas por que isso é importante?
O Economista e professor da Universidade de Pernambuco José Luiz Alves lembra que a população negra sofreu um processo secular de exclusão e discriminação que tem consequências diretas hoje. Mesmo após a escravidão que marcou a história da nossa colomização, o regime foi abolido sem que as mínimas condições de sobrevivência fossem oferecidas. “De repente o país começou a conviver com um contingente muito alto de trabalhadores de baixa escolaridade, baixa qualificação e sem os meios de se manter. O que a gente percebe é que, ao longo desse século de abolição, essa dívida não foi quitada de forma satisfatória”.
Na visão do especialista, a solução passa por políticas públicas de resgate dessa cidadania que foi negada aos que não eram brancos. Ele pontua como essenciais as políticas de amparo e incentivo, como as cotas, complementação de renda, escolarização e qualificação de mão de obra e incentivos fiscais. “Se você cria as cotas, mas não cria as condições para que essa população atinja a qualificação necessária, essas cotas podem ser uma medida inócua. É preciso que se cuide do amplo acesso da população a uma educação e saúde de qualidade, na base, para corrigir essas assimetrias”, afirma.
Emprego e renda
Apesar do atraso histórico e dissonante com a realidade brasileira, na qual 54% da população é preta ou parda, é possível reparar um aumento nos produtos destinados a cabelos e peles negras. As empresas de maquiagem já oferecem tons mais escuros de base e as de cabelo já não podem mais ignorar que os crespos demandam cuidados.
Doutor em economia pelo IE-Unicamp, o professor Valdeci Monteiro explica essa mudança com o pensamento de Nestor Canclini, estudioso argentino do ramo: “no Capitalismo as noções de cidadania e consumidor se aproximam. Quanto mais capacidade de consumo, mais acesso e status de cidadão”. Entretanto, segundo ele, em sociedades capitalistas nas quais o Estado exerce políticas públicas econômicas, sociais e ambientais mais ativas, há mecanismos de compensação e de estímulos para tornar indivíduos excluídos em cidadãos, em consumidores.
José Luiz complementa apontando para a relação entre renda elevada e consumo diversificado. Com mais dinheiro, aquele indivíduo começa a fazer parte de um circuito de produtos que ainda não fazia. Se a renda subir, seja por um aumento de salário, expansão de crédito ou aporte do governo – Bolsa Família ou Auxílio Emergencial, sobe o poder de compra. No caso das cotas, quando a população negra está se graduando, ela adentra a elite intelectual do país. “E isso rebate na renda, rebate no mercado. Ou o serviço baixa de preço, ou seu salário sobe. E nós tivemos as duas coisas no Brasil de uns dez anos atrás. Preços relativamente baixos, salário mínimo real elevado, política de crédito expansiva, Bolsa Família e políticas de cotas para o ensino. E isso está dando frutos agora”, explica o professor.
Empresas pequenas podem gerar grandes impactos
Se os negros ainda não ocupam as posições de chefia em grandes empresas, ao empreender, eles são responsáveis por mover as menores. Mas já que eles não estão liderando as multinacionais, será que isso tem impacto econômico relevante? Sim.
Hoje, no Brasil, são as pequenas e médias empresas que mais empregam. O professor José Luiz comenta que, em alguns setores, o grau de oligopolização é muito elevado e essas empresas estão num processo muito avançado de robotização e automação. “Poucos grandes grupos têm a maior fatia da renda, mas isso não esgota as oportunidades. As pequenas empresas, até por não ter as condições de se informatizar da mesma forma, compensam com o emprego”. Ou seja, as grandes empresas empregam mão de obra qualificadíssima, mas muito pouca em termos de quantidade. Enquanto as menores, com menos verba para investir em tecnologia, o trabalha segue majoritariamente humano.
Valdeci alerta que não se deve esquecer, que em paralelo a tais iniciativas de estímulo ao empreendedorismo para pessoas negras, também é relevante se ter iniciativas de garantia de empregabilidade. “Afinal, apesar da ode ao empreendedorismo no mundo, ainda não chegamos ao ‘fim dos empregos’”. Segundo ele, empreender é importante e necessário, mas manter as vagas de trabalho para os demais funcionários continua sendo essencial.