O Berro

Descortinando a beleza

Construção da imagem feminina: como os estereótipos moldaram a Geração Z.

Nasci em 2001, ano em que Anne Hathaway fazia as sobrancelhas e alisava o cabelo para se adequar à realeza no filme O Diário da Princesa. Confesso que até meus 15 anos, genuinamente guardava viva dentro de mim a utópica esperança de que a minha avó, Rainha de Genóvia, iria aparecer e me transformar em uma princesa. 

Porém, aos 15 anos, a realidade foi assustadoramente diferente. Além de ter perdido a minha avó naquele ano, quando me olhava no espelho, meu reflexo mostrava um cabelo cacheado indomável, sobrancelhas marcadas e expressivas e não, eu não tinha os ossos da clavícula tão aparentes quanto os de Mia Thermopolis

Devido a uma busca incessante pela beleza, eu vivia em guerra com o espelho, a balança, a comida, meu corpo e minha aparência. A tristeza e a angústia não tinham mais origem no fato de que não faria parte da realeza mas, sim, em passar horas encarando o espelho e percebendo que não parecia com Anne Hathaway. Mais do que isso, apesar de ser uma garota branca e magra (verdade que só consigo ter consciência hoje), eu não parecia com as meninas que tanto admirei e cresci me inspirando. Definitivamente, não parecia com quem via nas telas.

A jornalista e especialista em representação da imagem feminina na mídia, Laís Ferreira, explica que a infância é uma fase de construção da identidade coletiva. Portanto, é uma etapa da vida na qual  o impacto da indústria midiática é muito forte.

“É preciso se reconhecer no que se vê. Tanto se reconhecer no outro, quanto no produto midiático consumido, porque é nesse consumo dos desenhos, filmes e séries que passamos a entender o mundo e a nós mesmas. Por isso a importância da mídia refletir a realidade trazendo a representatividade”. 

Segundo Laís, todos os produtos midiáticos, independentemente da época vivida, influenciam na construção de uma identidade coletiva e na concepção de qual é o nosso papel na sociedade. Além disso, o culto ao corpo evidenciado na mídia força as mulheres a caberem em um modelo de beleza excludente e oprime quem está fora desse padrão. “Ainda hoje não existe uma pluralidade ideal nos veículos de comunicação e nos produtos da indústria midiática que consiga abarcar a diversidade de mulheres que existem no mundo real”, assegura a jornalista. 

O que veio antes de mim…

Referência para milhares de mulheres e garotas, Marilyn Monroe foi reduzida à sexualização da sua imagem, fator que trouxe grandes impactos para a sua vida pessoal, já que sofria de distúrbios psiquiátricos e tomava remédios para controlar a ansiedade e a insônia. A sua morte prematura, no início dos anos 60, fez com que Monroe perdesse alguns momentos da história significativos para as futuras conquistas das mulheres, como a contracultura na cultura pop, a ascensão da liberação sexual feminina e a segunda onda do feminismo. 

Enquanto isso, outra celebridade que também marcou a década de 1950 foi a inesquecível protagonista de Bonequinha de Luxo, Audrey Hepburn, que teve a infância e adolescência marcadas pela Segunda Guerra Mundial. A fome e desnutrição contribuíram para a sua anemia, doenças respiratórias, depressão e, principalmente, sua magreza.

Criamos a ideia de que essas mulheres são perfeitas e que, como também precisamos ser perfeitas, devemos ser como elas. Mas, ao me aprofundar nesses dois grandes exemplos atemporais do ideal feminino, cheguei à conclusão de que os bastidores podem ser repletos de insatisfação, dor e sofrimento. Há um preço a ser pago para se manter como uma referência e ícone de beleza na mídia e, lamentavelmente, esse preço não é barato.

A jornalista Laís Ferreira afirma que, há décadas, a mulher era designada ao âmbito doméstico e sempre teve o corpo objetificado para se encaixar nos padrões estéticos impostos pela indústria cultural e gerenciados pelo mercado farmacêutico, cosmético e da beleza.

“Os objetos midiáticos – novelas, filmes, revistas e propagandas – retratavam a mulher bem sucedida como uma mulher casada, com filhos e dona de casa. A mulher, além de ser colocada dentro do padrão de “bela, recatada e do lar”, não era entendida como um ser pensante, mas era olhada apenas como um objeto, como um corpo”.

Eu, nascida e criada nos anos 2000, sou um exemplo disso. Cresci tendo como referência as modelos de alta moda, atrizes, cantoras e personagens do cinema como Gisele Bündchen, Paris Hilton, Lindsay Lohan, Anne Hathaway, Regina George que ilustravam a jovem magra e de beleza ocidental como exemplos da imagem feminina de perfeição, sucesso e autocontrole. 

Minha experiência é muito parecida com a de muitas meninas da minha geração. A estudante de psicologia Gabrielle Batista, de 23 anos, conta que quando passou a ter mais contato com o mundo fora da sua bolha familiar, foi deixando de se sentir bonita. “Sem dúvidas, fui influenciada pelos padrões estéticos que a mídia me fazia acreditar que precisava alcançar. E, apesar de ser uma garota branca, magra e que performa feminilidade, em alguns momentos não me sentia inserida no que consideravam belo”, desabafa.

 O que nos une…

Quando mais jovem, em meio a tantas comparações, nunca pensei que garotas como eu e Gabrielle pudessemos ter algo em comum com mulheres como Lily Collins, Anahí, Hilary Duff, Lucy Hale e Lady Gaga. Mas, sim, nós temos. O histórico de distúrbios alimentares.

“Por influência dos padrões de beleza, as garotas acabam por ter uma visão ou um modo de se enxergar que, de certa forma, é deturpado. Ou seja, a garota se olha no espelho e não se enxerga”, informa a psicóloga Iara Pessoa. Segundo Iara, esse comportamento pode causar transtornos psiquiátricos, como é o caso dos distúrbios alimentares, entre eles a anorexia e a bulimia, por exemplo. 

Um relatório da Common Sense Media, publicado em 2015, baseado em uma revisão de estudos existentes sobre imagem corporal e mídia, apurou que, entre 1999 e 2006, as hospitalizações por transtornos alimentares nos EUA aumentaram 119% entre as crianças com menos de 12 anos de idade. Essa é uma pesquisa que comprova que a exacerbação da busca pelo padrão estético, instaurado nos anos 2000, teve um papel central no aumento do número de casos de transtornos alimentares e de imagem. 

Por boa parte da minha vida odiei a minha imagem e o meu corpo e, durante alguns anos, lutei contra a anorexia. Assim como eu, Gabrielle também desenvolveu alguns distúrbios decorrentes da pressão estética, em seu caso foram a anorexia e a bulimia.

“Parei de comer por um tempo e achava que se comesse engordaria e ficaria feia, porque acreditava que precisava obedecer os padrões que eram impostos de ser uma pessoa magra tal qual o que era exposto nas capas de revista. Sofri muito com isso e até hoje sofro, mas tento trabalhar internamente todo dia para não ser influenciada por isso”, desabafa a estudante. 

A era digital e as redes sociais

O mundo virtual apresenta uma realidade na qual  os ícones da indústria do entretenimento estão mais tangíveis e os influencers (influenciadores, em português) utilizam retoques em fotos, mas vendem a ideia de que suas características físicas são naturais. Além disso, é preciso citar os filtros, elementos criados para aplicativos distorcerem nossas aparências. Essas ferramentas são milimetricamente pensadas para aparentar que, além de sermos belas, somos perfeitas. Afinal, os smartphones oferecem aplicativos que podem me mostrar, em imagem e semelhança, como posso ser parecida com uma angel da Victoria’s Secret, ou melhor, uma Kardashian.

A estudante Mariana Gomes, de 17 anos, confessa passar horas nas redes sociais e que, hoje em dia, as garotas que são as suas maiores inspirações vêm das redes. Além disso, com a volta das aulas presenciais, a jovem não se sente confortável em ir à escola sem maquiagem, uma vez que, durante a pandemia, ficou “muito refém dos filtros”. “Hoje eu não faço boomerang, não gravo vídeo, não tiro nenhuma foto sequer que não seja com filtro. Já tenho os meus filtros favoritos e seria um sonho poder trazer eles para a vida real”, relatou.

Apesar das armadilhas, as redes sociais oferecem a possibilidade de nos conectarmos e acompanharmos diferentes personalidades, principalmente, mulheres que mostram seus corpos e rostos reais e que incentivam a auto aceitação e o amor próprio. Como, por exemplo, a criadora de conteúdo digital Camile Cabañas, de 25 anos. A influenciadora brasileira aborda temas importantes sobre os chamados Skin Positivity e Body Positive.

"[Estamos] em um mundo no qual os filtros e as edições corporais que distorcem quem somos ganharam um destaque absurdo. A nossa relação com nós mesmos fica cada vez mais deturpada, e isso afeta diretamente a nossa autoestima e autoimagem. Principalmente quando mantemos uma cultura onde meu valor depende da minha aparência e 'beleza''', diz Camile.

Camile acredita que só existe liberdade quando estamos em paz com a nossa realidade e que, para isso, é necessário ter pessoas compartilhando fotos sem modificações ou retoques, mostrando a realidade sem causar uma impressão ilusória e computadorizada. “Viver uma vida em guerra com nossa aparência é assinar um contrato com a mediocridade e com a superficialidade”, declara.

Por isso, ela acredita que consumir conteúdos de mulheres com corpos realistas tem sido a chave principal para a sua mudança de perspectiva. Ver mulheres com o corpo parecido com o dela -mesmo através da tela-, ajudou a construir a persepção de sua própria beleza.

Camile reforça a importância da terapia e do apoio dado aos criadores de conteúdo que se expõem sem filtros ou poses forçadas.

“Filtre as suas influências e busque a raiz dos seus problemas com sua autoestima e autoimagem. Pois nunca iremos controlar o que os outros postam, mas podemos mudar a forma como reagimos. E terapia tem um papel essencial nessa jornada”

Apesar de novas mudanças serem necessárias, é preciso reconhecer que houve uma evolução na representação feminina nos meios midiáticos. Hoje, conseguimos contemplar mais diversidade do que tínhamos décadas atrás. Porém, ainda temos um longo caminho a percorrer. Como, por exemplo, a inclusão de mulheres trans em papéis de destaque e a deserotização da mulher negra na mídia. “O que temos hoje é mais perto do real do que tínhamos antes mas, sem dúvidas, ainda temos alguns degraus a avançar para conseguirmos ter mais diversidade e, assim, alcançar uma verdadeira representação das mulheres na mídia”, assegura a especialista Laís Ferreira.

Em suma, a Luma da infância e da adolescência pode, sim, ter crescido acreditando não ser boa o suficiente por não se parecer com Anne Hathaway. E, assim como diversas outras garotas, passou a vida comparando os seus bastidores com os palcos alheios. Mas, a Luma do presente fica muito feliz em perceber que a nossa geração está cada vez mais rasgando as cortinas e trazendo os holofotes para o que é real e genuíno. 

Repórter:
Luma Lima
Editor
Ana Carolina Guerra

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