Grafite como arte de resistência

Por Laura Machado

Do movimento hip-hop, o grafite é uma forma de democratizar o acesso da arte e revolucionar questões de cunho político-social

Outra vez a esperança na mochila eu ponho, 

quanto tempo a gente ainda tem pra realizar os nossos sonhos. 

– Emicida

A arte de rua é um convite para o olhar sensível, cru e atento daqueles que vivem junto aos demais, são como os demais, mas ainda são ignorados, silenciados, violentados. Mais do que isso, essa arte é uma forma de resistência e empoderamento. Os artistas por trás dos desenhos e escritos são pessoas que observam com atenção o mundo que os cerca, levando em consideração a cultura e a realidade social do momento. Presente por toda a cidade do Recife, o grafite faz pulsar, mas afinal, o que define essa arte? 

O verbo grafitar, no dicionário online Infopédia, é definido como: “desenhar ou escrever em muros ou paredes de locais públicos, geralmente com tinta em spray; fazer graffitis ou grafitos (em)”. Apesar de verdadeira, essa forma de descrever a arte do grafite pode ser muito expandida, se tornando capaz de comportar a significância que cada pequena ação de grafitagem, coletivo e evento que acontecem. O grafite remete ao passado, mas é uma manifestação cultural atual e contemporânea. 

Para entender a importância do grafite para a sociedade é necessário voltar para suas origens e perceber que, desde os tempos pré-históricos, a linguagem sempre foi um meio de comunicação e o desenho se fez presente por toda a história, até a atualidade. Depois dos famosos desenhos em cavernas, os hieróglifos do antigo Egito são exemplos de ilustrações pintadas nas paredes cujo principal propósito era o de comunicar. No mundo das artes clássicas, muitas das mais famosas pinturas foram construídas em murais, tetos de capelas e igrejas, e outras superfícies não associadas a telas de arte. Todos esses movimentos históricos ajudam a entender a necessidade humana do fazer artístico e mais do que isso, de expressar e resistir. 

Tendo em vista o processo histórico de formação da arte de grafite, um dos principais pontos que torna-o indispensável para a sociedade são os artistas que o fazem. Dentre os muitos envolvidos na cena dessa arte na cidade do Recife e adjacentes, Mila Barros e Filipe Fil conversaram com O Berro. 

Mila, que além de ser artista visual e grafiteira, também é educadora e mãe de um menino de nove anos. A artista começou a grafitar no ano de 2017 e hoje faz parte de diversos coletivos tal qual o Coletivo Pão e Tinta, Pixe Girls e Coletivo Cabras, além de atuar com o grafite de maneira direta. “Eu já tinha participado de alguns eventos, mas sempre na parte de produção. Tinha muita vontade de pintar, mas o machismo na cena sempre foi um bloqueio. Apesar disso, foi em 2017 que eu entendi que era isso que eu queria para minha vida, era ali que eu me encontrava e me realizava”, explicou. 

Tendo seu início na cena do grafite ainda antes de Mila, o artista Luis Filipe, conhecido como Fil, começou a ter contato com a arte ainda criança: “Acontece um evento de grafite na escola e foi quando eu descobri e fiquei encantado, pensei ‘meu Deus, o que é isso?’. Fiz meu primeiro trabalho na rua em 2012, com 16 anos e foi uma experiência horrível (risos), todo mundo que passava falava mal, mas eu penso que se eu tivesse que parar, eu teria parado ali, no primeiro trabalho”. 

Com uma pluralidade de estilos e técnicas artísticas, o grafite não possui uma forma única de ser feito, sendo uma arte capaz de mutabilidade e que acontece em acordo com o mundo exterior. Parte do movimento hip-hop, essa arte foi utilizada nos Estados Unidos na década de oitenta como forma de protesto e, de uma forma ou de outra, isso segue até os dias de hoje. 

Para Mila, o grafite nasce de uma emergência social e segue sendo uma “ ferramenta de construção política-social e de transformação social, o que tem tudo a ver. Para mim a arte é muito voltada para isso e eu não consigo dissociar a arte da política. É mudança, aceitação de uma população, de enxergar o que a gente faz como arte”. 

A artista observou desde sua entrada no mundo da arte como o grafite pode ser usado para clamar mudanças, realizar denúncias e expor o silenciamento de determinados grupos. Sendo assim, Mila criou como marca registrada a frase “Mais mães no rolê”, que busca incentivar mulheres com filhos a seguirem pintando, pixando, grafitando e, acima de tudo, vivendo a arte em sua integridade. 

“Uma das coisas que me chamava muita atenção dentro do movimento do grafite era a quantidade de mulheres que pararam de pintar quando se tornaram mães, esse movimento me chamava atenção. E eu comecei a pintar já mãe e eu tenho grandes referências de todo o Brasil que pintam sendo mães, mas apesar delas existirem, era um número gritante de mulheres que pararam depois de serem mães. Por isso eu comecei a espalhar pelo Recife a frase”, explica. 

Como mulher e mãe, Mila explica que sua arte não pode ser dissociada de sua maternidade e explica que através da arte de grafite, sentia-se livre, era capaz de entrar em acordo com suas próprias questões e estar em um ambiente só seu, particular. 

Voltada para a vivência, a cultura do hip-hop e do grafite é uma arte que diz respeito à relação particular de uma pessoa com a pintura, com seu local de vida, suas experiências sociais e diversos outros fatores. Para Filipe Fil, “o grafite era uma forma de botar para fora, né? De externar os sentimentos. A cena daqui tem suas problemáticas, mas ainda assim somos muito unidos”. 

“O grafite é o que você vive na rua, é sua relação com a sua ideia, sua vida”, completa Barros. 

Apesar de carregar essa importância, Fil ressalta que o preconceito está sempre presente: “É impossível não acontecer [o preconceito]. Existem pessoas que não gostam independente do que formos pintar, quando estamos na rua fazendo algo que as pessoas não acham que é bonito e aceitável, elas não gostam. É um estranhamento”. 

O movimento da arte do grafite é essencial para a sociedade e atua em levar a arte para pessoas que normalmente não ocupam ou visitam galerias e museus. A arte ainda é muito vista como artigo de luxo e a intenção dos artistas grafiteiros também perpassa a luta pela democratização da arte. Através dos desenhos na rua, nos túneis, nas paredes, as pessoas podem respirar e se avistarem em uma obra de destaque. 

“O grafite vem com um empoderamento de pertencimento. De sermos donos e donas da cidade e de colocarmos nela o que a gente quer ver. O muro branco dentro de uma comunidade é um muro branco, mas um muro colorido, todo cheio de mensagem, de ideia, é outra relação que a pessoa constrói com sua cidade”, conclui Mila. 

Edição: Rafael Gueiros

"O grafite é o que você vive na rua, é sua relação com a sua ideia, sua vida”