Por Beatriz Maciel
Foi em 2016, em uma sala no andar de cima da Paróquia de Santa Isabel, na periferia da zona norte de Recife, que a Pontinha de Futuro nasceu. O projeto, encabeçado pela bailarina e professora Jaynara Figueirêdo e seu marido, Armerindo Neto, leva aulas de ballet clássico para crianças e adolescentes (entre 3 e 18 anos) da comunidade a um pequeno valor, apenas 30% das alunas pagam uma taxa de 35,00 reais por mês e 70% têm aulas de graça .
O projeto conta com o apoio de madrinhas, que se responsabilizam cada uma por uma criança e, de forma voluntária, custeiam os materiais, figurinos e auxiliam nas produções e eventos da companhia. Em 2023, o projeto está mudando de sede, devido a alguns problemas estruturais e à mudança na gestão da igreja, transferindo a Pontinha de Futuro para o Instituto Casa Amarela Social (CAS), representante do G10 Favelas Pernambuco, no bairro de Casa Amarela.
Aula na Pontinha de Futuro / Acervo pessoal
Os primeiros passos da Pontinha de Futuro
Foi com apenas quatro anos de idade que Jaynara Figueirêdo, conhecida por Jay, começou sua história com a dança. Já dançarina de dança portuguesa, no Clube Português do Recife, e incentivada pela avó, que também sempre sonhou em ser bailarina e que passou a vender lanches na academia de ballet para pagar as aulas e figurinos da neta, Jaynara se envolveu com o ballet clássico e, desde então, cultivou uma relação de amor com essa arte. “Meu começo com a dança não foi fácil. Nós éramos uma família de classe média e na época que eu fazia ballet, era uma coisa meio que inacessível para todos. Ainda é, mas estamos aos poucos conseguindo desconstruir isso. Sempre foi uma modalidade cara, porque não é só a modalidade, são os materiais, a sapatilha de ponta… as coisas relacionadas a material de ballet sempre são coisas caras”, relembra Jay.
Foram anos de paixão e busca pelo aperfeiçoamento na dança, e com o incentivo da avó e das professoras, em especial, Alaíde Gomes, a bailarina trilhou seus passos. “Sempre tive como inspiração a minha mestra Alaíde Gomes, que é uma das pioneiras em Pernambuco na área de ballet. Uma mulher negra, forte, super inspiradora, super criativa. Quando fui chegando na adolescência, na idade adulta, peguei a mestra Alaíde e foi lá toda a minha formação clássica e de jazz”.
Jaynara Figueirêdo / Acervo pessoal
A ideia da Pontinha de Futuro veio da trajetória pessoal da dançarina. “Eu convivi com essas dificuldades relacionadas ao ballet desde cedo. Desde sempre eu via o sacrifício que minha avó fazia e via que não era todo mundo que tinha aquela oportunidade […]. E hoje, graças a Deus, sinto que posso favorecer muita gente com o projeto nesse sentido: de mostrar às crianças e adolescentes que elas podem”.
“O projeto é uma forma de retribuir tudo que eu consegui através da arte. Passar para essas crianças. Às vezes a gente observa que tem tanto talento por aí, perdido, e o que falta é oportunidade” (Jaynara)
Jaynara destaca ainda que, ao começar a idealizar o projeto, quis buscar algo que agregasse valores na vida de suas alunas, porque os ensinamentos do ballet extrapolam a sala de aula, gerando disciplina, foco e determinação. A professora, que trabalha em academias de ginástica, faz questão de levar sempre à Pontinha palestras, aulas de yoga, de exercício funcional e outros profissionais que possam agregar de alguma maneira na formação das alunas. “Fazer com que essas pessoas que moram em comunidades tenham acesso a outros tipos de cultura, tenham outras experiências e vivências”. A geração de oportunidades vai além: com a ajuda das madrinhas, o projeto já pôde proporcionar experiências inesquecíveis, como o envio de cartas para a ativista pela educação das meninas e vencedora do prêmio Nobel da Paz, Malala Yousafzai, e uma excursão para o Teatro Guararapes, onde 40 crianças puderam assistir à apresentação do Ballet Imperial da Rússia.
“É muito gratificante ver a felicidade, aqueles olhinhos brilhando vendo os bailarinos profissionais em cena, é demais, fico até emocionada de falar… O projeto é basicamente amor e arte. Todo o amor que eu posso envolver. Minha religião é minha família e o projeto. É amor e trabalho!” (Jaynara)
Jaynara Figueirêdo / Acervo pessoal
O projeto não se limita apenas às crianças. As famílias e a comunidade também são impactadas pelas ações da Pontinha de Futuro. Durante a pandemia da Covid-19, enquanto as aulas de ballet continuavam de forma remota, foram feitas ações para levar cestas básicas para as alunas e suas famílias.
Além disso, um dos pilares da organização é a inclusão. Alunas com hiperatividade, déficit de atenção, autismo e microcefalia recebem todos os benefícios que o ballet pode proporcionar: coordenação motora, concentração, postura e, acima de tudo, autoestima, confiança e prazer. “Ela sempre sonhou em fazer ballet mas nunca tinha tido a oportunidade. Quando ela conseguiu fazer a primeira aula, se sentiu transformada. Depois que subiu no palco, parecia uma borboleta saindo do casulo”, é o que diz a professora sobre Valentina, de 15 anos, que tem microcefalia e participa da Pontinha de Futuro desde janeiro de 2022, assim como sua irmã, Catharina, de 4 anos.
Quem participa da Pontinha
A Pontinha de Futuro é um espaço para autoconhecimento, aprendizado e diversão não só para as alunas, mas também para suas famílias. A importância da dança se manifesta, para cada uma delas, de uma forma especial, e guiam o dia a dia dessas crianças por um caminho cheio de música, beleza e oportunidades.
Para Maria Júlia, de 8 anos, as aulas são um momento de diversão. E para Suzana, sua mãe, o projeto é uma forma de ajudá-la tanto na questão física – através dos exercícios, foi vista uma melhora tanto no problema hormonal que afeta o crescimento de Júlia, quanto na disciplina, postura e responsabilidade em casa e na escola. “O ballet é uma dança que eu sempre fui apaixonada. Desde criança sempre tive vontade de dançar, mas a gente não tinha a facilidade no acesso como temos hoje, principalmente com o projeto”, diz Suzana.
“Quando vai ter apresentação ela tem aquela responsabilidade do ensaio, de tentar dar o melhor que ela pode sempre […] Não tem aquela cobrança de ser sempre melhor em tudo, deixamos ela bem ciente disso, mas ela passou a criar mais responsabilidade”.
Maria Júlia, 8 anos / Acervo pessoal
“Nas aulas eu gosto de aprender todos os passos para eu me sair muito bem nas apresentações. Eu gosto da presença do público e da minha família, porque quando acaba a apresentação nós somos aplaudidas” (Maria Júlia)
Já Safira, tem 9 anos e participa do projeto desde 2018. Cássia, sua mãe, que também tem um carinho pela dança e vê na atividade uma diversão, viu, na Pontinha de Futuro, uma possibilidade de realizar o desejo da filha. “Quando ela entrou, ela tinha um desejo de fazer dança, só que os custos são altos em escolas de ballet. Aí a minha mãe viu umas meninas com a roupinha de ballet saindo da igreja, e falou com Jay. Safira conseguiu entrar para dançar”.
Para Cássia, a história de Safira com a dança é, também, uma história de superação: “Há uns dois anos ela foi diagnosticada com TDAH, então o ballet tem sido um ótimo exercício em relação à concentração. Além de um prazer, questão de autoestima, ela se sente muito importante quando tem apresentações, é muito legal […] Quem tem TDAH tem vários conflitos, um deles é a questão da autoestima porque sempre está achando que está fazendo coisas erradas, mas ela se acha maravilhosa quando está dançando e isso é muito importante”.
Cássia reforça, ainda, que o aspecto de cidadania do projeto também é essencial, e caminha lado a lado dos benefícios físicos que confere às crianças. “Qualquer tipo de cultura que você vai explorar é um aprendizado, é aguçar algum conhecimento, então com certeza é um aparelho de transformação na vida das pessoas”.
Safira, 9 anos / Acervo pessoal
“Aprendo a me concentrar, aprendo novos passos, novas danças e também é divertido (…). Me sinto bem lá. Me sinto confortável. Eu gosto da parte que a gente faz um círculo e faz umas manobras. Faz estrelinha, faz cambalhota, borboletinha, saltos… Gosto das roupas, de ficar em cima do palco com todo mundo me vendo. Quando termina, batem palmas e me sinto confortável lá em cima. Um pouquinho tímida, mas confortável” (Safira)
Ingrid, de 12 anos, já encontrou no ballet um dos seus grandes sonhos. Ela começou suas aulas na Pontinha de Futuro em 2017, por incentivo de sua madrinha. Para Isabel, sua mãe, a postura da filha na aula foi uma surpresa: “Quando cheguei lá na primeira aula, a experimental, não esqueço nunca… Você via que ela tinha talento para aquilo. Me surpreendeu […] Eu e minha prima ficamos de boca aberta quando ela se apresentou, ‘Meu Deus do céu, que menina é essa?’”.
O gosto pela dança sempre esteve na família de Ingrid mas, não necessariamente, pelo ballet. Foi o amor da menina pela dança, seu gosto pelas aulas e seu talento – já apontado pela professora Jay, que conquistou a todos. “Ela ama o ballet e ela começou a se entregar naquilo que ela ama. Aquilo era importante para ela e passou a ser importante para a gente também. E ficamos muito orgulhosos do percurso dela”, relembra Isabel.
“Ela se doa muito no que ela faz, ela ama o que ela faz. E esse amor contagiou a nossa família” (Isabel)
O amor veio não só de Ingrid, que encontrou na dança uma grande paixão e um grande sonho, mas do incentivo de Jay e de todas as pessoas que fazem o projeto acontecer. Há o amor de Jay pelo ensino, o das crianças pelas aulas, o de mães, como Isabel, que participam ativamente da rotina e dos eventos propostos pela companhia. “É um projeto muito lindo, você vê que são pessoas que realmente fazem com gosto porque amam o que fazem”.
Ingrid, 12 anos / Acervo pessoal
“Eu sinto, na maioria das vezes, a sensação de paz. Porque tem dias que eu tô triste e quando vou para o ballet me sinto melhor. Não sei como, mas sei que me sinto, de alguma forma […] Nas apresentações eu mais gosto quando estou dançando e no final, quando ela acaba, porque dá a sensação de que você trabalhou para chegar ali. E você conseguiu conquistar aquilo que você tentou todo dia, decorando a coreografia, tentando e tentando e, quando chegou no dia, deu tudo certo. A sensação é de alívio, é isso que eu mais gosto” (Ingrid)
Luiza / Acervo pessoal
“Eu me sinto leve e me sinto bem por fazer o que eu gosto. Eu gosto dos palcos, do público, de quando temos que dançar com sapatilha de ponta, dos figurinos… Gosto de tudo!” (Luiza)
“A força motriz é a partir da união feminina”
Além de Jaynara, professora e idealizadora, o projeto conta com mais colaboradores. Armerindo Neto, marido de Jaynara administra a escola junto com ela, e participa ativamente também na parte de produção. Durante os eventos e espetáculos, a família inteira de Jay se envolve, “quando tem evento, todo mundo da família participa. Meus filhos, até meu avô de 97 anos, arrumamos algo para ele. A família toda abraçou a causa”, conta a bailarina. Mas, para fazer a Pontinha acontecer, o projeto conta com as madrinhas, que se responsabilizam, cada uma, por uma criança do projeto, e ficam a cargo de apoiar e viabilizar financeiramente as alunas. Através da compra de materiais como meia-calças, sapatilhas, saias, figurinos das apresentações e do pagamento de taxas para realização de eventos temáticos, as madrinhas ajudam na manutenção do projeto. O projeto também conta com padrinhos mas, atualmente, a maioria é feminina.
Algumas madrinhas, também, colaboram voluntariamente e de forma específica. Madrinhas médicas, dentistas e jornalistas, por exemplo, atuam com atendimento pediátrico periódico para as crianças e produção de materiais para a comunicação interna e externa do projeto.
Alunas da Pontinha de Futuro / Acervo pessoal
Para elas que também têm, em sua maioria, uma história pessoal com o ballet, a colaboração é muito especial. Márcia Pedrosa, professora universitária, é madrinha de uma bailarina de 12 anos desde 2022, e diz: “além do ballet ser uma atividade que dá imenso prazer, é importante para a saúde, trabalha postura, trabalha disciplina, trabalha elegância, essas meninas se sentem valorizadas, se sentem com autoestima mais elevada. Eu percebo que as mães também se integram de alguma forma. Quando elas vão, é um ponto de reunião, de interação social para as mães que estão levando suas filhas, vislumbrando outras oportunidades pras meninas […] É super importante na vida dessas crianças e, digo mais, na vida dessas famílias participar da Pontinha de Futuro”.
Júlia Nogueira é jornalista e participa como voluntária desde o início do projeto. Ela, que também faz aulas de dança com a professora Jaynara, chama o processo de voluntariado, carinhosamente, de amadrinhamento, “porque tem mais mulheres que homens apoiando. A força motriz é a partir da união feminina”. A história pessoal de Júlia com o ballet também influenciou seu interesse em participar do projeto. Após ter feito dança por muitos anos, mas parado devido a uma tendinite, os ensinamentos das aulas permaneceram, e ela observa os mesmos benefícios que a dança teve em sua vida nas meninas que participam da Pontinha de Futuro: “Fazem quase trinta anos, mas (o ballet) me ajudou a ser a pessoa que eu sou hoje, na disciplina, consciência musical, ritmo… não é só aquela disciplina militarizada em busca da perfeição. É mais do que uma atividade física, é arte pura, é muito bonito […]”. A jornalista destaca, também, a importância do trabalho social e de inclusão realizado nas aulas: “É a oportunidade de apresentar uma realidade desconhecida para a maioria. Não fosse o projeto, as crianças não teriam a oportunidade de ter uma atividade extracurricular com tanta qualidade, afeto, acolhimento. Ainda que (o projeto) enfrente dificuldades na infraestrutura física, a boa vontade de Jay é um farol, uma luz que guia essas crianças e apresenta a elas o caminho do bem. Algumas crianças têm uma base familiar sólida, mas outras […] são criadas em situações de carência e violência e o projeto é um alento, uma luz num território que talvez fosse mais sombrio”.
“O projeto, que traz a inclusão social por meio da dança, tem uma importância tremenda. É sentido de pertencimento, representatividade, acolhimento, segurança, afeto, conhecimento, contato com a arte” (Júlia Nogueira)
Integrantes da Pontinha de Futuro / Acervo pessoal
Em seus 7 anos de existência, a Pontinha de Futuro vem mudando vidas, incentivando sonhos e oferecendo novas oportunidades para crianças e suas famílias. Seja em uma pequena sala em cima da igreja, remotamente através do celular, ou em sua nova sede no Instituto Casa Amarela Social, a potência da dança e do ensino extrapolam qualquer barreira física. É com muito amor e trabalho duro que Jaynara e sua família, junto com as madrinhas do projeto, impactam o dia a dia de sua comunidade. E é através da arte, do acolhimento e da oportunidade, que crianças e jovens traçam seus passos por novos caminhos e almejam sonhos cada vez maiores – com a certeza de que os podem realizar.
Para acompanhar e conhecer mais sobre a Pontinha de Futuro, siga sua página no Instagram: @adm.pontinhadefuturo
Edição: Rafael Gueiros
*Registro aqui o meu profundo agradecimento à Jay, Suellen, Maria Júlia, Safira, Valentina, Catharina, Ingrid, Luiza, Suzana, Cássia, Isabel, Danielle, Daniella, Márcia, Gabriela, Júlia, Mirella e todas as mães, responsáveis, alunas e madrinhas da Pontinha de Futuro. Obrigada por me confiarem suas histórias e ritmos. Que essa matéria possa mostrar o tamanho de suas potências e que ajude, de alguma forma, a dar mais visibilidade ao projeto. Que a Pontinha siga sendo um lindo Grand Jeté na vida das pessoas.