De que periferia estamos falando?

Por Marcelo Dantas

“Enquanto eles tiverem se matando, tô nem aí. Não atingindo gente do bem, pessoas do bem, tô nem aí”, estas palavras dão início a um vídeo de Sikêra Jr., disponível no canal “Notícias RedeTV”, que tem mais de um milhão de inscritos e 16 mil vídeos, e se descreve como o “canal que reúne todo o conteúdo de Jornalismo e Esportes da RedeTV!”.

Reprodução / YouTube

Vejamos agora o que diz o Código de Ética dos Jornalistas em seu sexto artigo, inciso I, sobre o dever do jornalista:
“I – opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos;”
E o que está contido no documento internacional citado logo acima?
“Artigo 3 – Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.”
Com uma costura rápida entre as três citações, é fácil perceber que o que foi dito pelo apresentador não está de acordo nem com a ética do campo profissional, menos ainda com o respeito à vida, que se imagina como pré-requisito para a vida em sociedade.

Esse tipo de (pretenso) jornalismo, que viola direitos e incita ódio e violência atua de forma mórbida com grupos específicos da sociedade que têm cor, classe e território. São as periferias urbanas que mais sofrem como uma campanha midiática que constrói uma imagem negativa, ligada ao crime e à violência, sem que nunca questionem as causas – que tendem a estar confortavelmente em suas mansões, coberturas e iates.

Charge / Carlos Latuff


Em entrevista para a Revista “O Berro”, Andrea Trigueiro, Coordenadora do curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e Educomunicadora, afirma que há um desequilíbrio nítido na cobertura midiática sobre crimes, por exemplo.


Essa abordagem não só reforça uma imagem negativa das periferias, como é parte central da edificação de um imaginário da favela, da comunidade, dos Altos e dos becos como locais de iminente perigo, que lá estão instalados quase que organicamente, intrinsecamente.

A Educomunicadora destaca, ainda, que, além da tentativa de homogeneizar a periferia e negar suas potências, essa mídia ainda acaba isentando o abandono do Estado e criminalizando a periferia.


“O racismo constitui não só as ações conscientes, como também as inconscientes”, com tal afirmação do filósofo e atual Ministro dos Direitos Humanos Silvio Almeida, extraída do vídeo “O que é racismo estrutural?”, dois pontos logo me inundam a mente: 1- que se o racismo estrutural é posto como algo da normalidade, por funcionar de acordo com as regras do jogo, e opera também no campo do inconsciente, logo, a mídia tem papel de destaque na perpetuação desta lógica estrutural, e a criminalização das periferias, a naturalização da morte de pessoas negras, e o “apagamento” de outros grupos sociais na mídia são engrenagens de tal estrutura; e 2- como rapidamente qualificamos a citação a vídeos aqui neste artigo.

Retomando à Declaração Universal dos Direitos Humanos, temos no artigo 19, a Comunicação enquanto Direito Humano:

“Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.”

Se todo ser humano tem direito de receber, mas também de transmitir informações e idéias, quando nos noticiários mal vemos menção à população indígena e comunidades quilombolas, por exemplo, é também violação de direitos.

Ao digitar no site Sinônimos a palavra periferia, a primeira coisa que vem é “região afastada de um centro urbano” e na sequência “subúrbio, arredores, arrabalde, cercanias, imediações, redondezas”. Como exemplo temos “Eu não tenho vergonha de viver na periferia” e pq teria? Mas trago tudo isso para refletir sobre o antônimo, a palavra contraria, o sentido oposto. Centro.

Se o que não for centro é periferia, então há mais periferias do que um primeiro olhar permite, ou do quê a mídia quer mostrar.


Imagem: Reprodução/ Revista Veja

Reprodução / Revista Veja


A favela é periferia do centro da cidade. O quarto da empregada é periferia do cofre escondido no apartamento de luxo. Os povos indígenas são periferia da invasão européia. As comunidades quilombolas são periferia do processo de escravização. As pessoas em situação de rua são periferia dos milionários. E os exemplos são vários.

Mas ao olhar para a mídia não vemos nem a pluralidade de periferias, nem a pluralidade nas periferias. Afinal, de que periferia estamos falando?

*Para entender mais e se aprofundar sobre o assunto, sugiro a leitura da Dissertação “Periferia é periferia em qualquer lugar?”, de Milene Peixoto Ávila.


Edição: Nivaldo Machado

Será que os grandes veículos de comunicação falam da periferia com verdadeira profundidade? Informações recortadas representam um grande perigo para o entendimento da periferia em toda a sua dimensão.