Literatura x Vida real: Personagens periféricos e o molde do imaginário nacional

Por Beatriz Maciel

Você já deve ter ouvido falar no termo “imaginário nacional”, mas o que ele é, exatamente? Basicamente, o imaginário nacional é o conjunto de crenças, ideias, histórias e figuras que moldam a maneira de se ver e entender determinado país. No caso do Brasil, esse imaginário foi muito influenciado pelas manifestações artísticas, especialmente pela literatura, e é revisitado até hoje, sendo objeto de identificação e questionamento. Escritores de todos os lugares ajudaram a construir as ideias de seus países, registrando nas páginas dos livros o seu tempo, espaço, costumes, personalidades – e claro, não podemos tomar tudo isso como verdades absolutas, tendo em vista que a literatura é permeada de  fantasia e ficção.

Para construir esse conceito e relacioná-lo com a literatura e a realidade brasileira, conversamos com Odailta Alves, professora e escritora recifense, e Fernanda Barbosa, concluinte do bacharelado em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco. 

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A literatura e o país

Para se entender a dinâmica de um país, um dos primeiros passos é o de conhecer sua literatura. É através dela que o tempo, espaço, costumes, problemas e tradições de uma sociedade se manifestam, registrando, nas páginas dos livros, como aquele lugar funciona. 

As representações na literatura brasileira de personagens periféricos (consideramos aqui os personagens à margem da capital, à margem da segurança financeira e que estão, de alguma maneira, em um contexto de invisibilidade) são um retrato pungente do Brasil. Todo personagem é inspirado em alguém, em algum vizinho, irmão, amigo. Conhecer, assim, alguns personagens icônicos da literatura nacional nos mostra um pouco mais da dinâmica do país e, não coincidentemente, pode nos lembrar de pessoas e situações reais.

A professora Odailta Alves reforça que “a obra literária vai dizer muito sobre o olhar que se tem sobre determinados grupos. Ainda hoje, o que muitas vezes se sabe sobre determinado período da história é a partir da literatura. Do teatro produzido pelos jesuítas, por exemplo, que não vai representar a realidade como era – porque é a realidade a partir de um olhar católico e branco, mas é o que se tem sobre aquele momento. As obras literárias são registros”. E é esse olhar de determinados grupos sobre outros que, registrado na literatura, acaba moldando um imaginário coletivo e abrindo espaços para crenças e estereótipos. 

O peso dos estereótipos na construção do imaginário

Esse imaginário é, também, pautado em estereótipos que, mesmo depois de muito tempo, continuam sendo reproduzidos por meios culturais além da literatura, como na televisão e nas redes sociais. “Quando eu leio o Auto da Compadecida, quando vejo a peça, assisto ao filme, João Grilo e Chicó não me parecem estereótipos nordestinos. Consigo enxergar o Auto da Compadecida na minha cultura, mas isso não acontece pelas roupas que ele usa, pela ocupação que ele tem, nem por nada superficial, isso são elementos de uma época que não existe mais. Mas são símbolos de algo maior e que se repete, como a pobreza, a injustiça, elementos mais profundos do personagem e história que permitem uma renovação desse personagem, uma identificação com o público”, diz a estudante Fernanda Barbosa.

Ficção x Realidade 

É preciso reiterar que a literatura não é, obrigatoriamente, um espelho da realidade, uma vez que não é essa a sua função principal. Embora possa, como vimos, estabelecer padrões e registrar ideias formadoras de uma determinada sociedade. 

“Existe uma ligação [entre realidade e literatura], mas não é de espelhamento. O que a literatura sempre fez, além de influenciar hábitos e ideias, e ainda pode fazer, é expressar o sentimento de uma época. O ritmo de um grupo, o pensamento de uma sociedade”, explica Fernanda Barbosa.

“A gente consegue entender um povo, uma nação, a partir de uma obra literária vendo o que é possível para aquela sociedade. Personagens podem ser símbolos do que se pensa sobre pessoas e suas realidades. Tia Nastácia, do Sítio do Picapau Amarelo, representa a ideia que determinado grupo fazia das pessoas negras no século vinte e não as pessoas negras no século vinte. O que uma pessoa ou um grupo de pessoas representa é uma ideia arbitrária, não é a realidade”. 

Para Odailta Alves, essa representação da realidade na ficção vem mudando aos poucos, o que é um ponto positivo para acabar com certos conceitos e preconceitos enraizados: “Tia Nastácia é a representação da imagem que se tinha e que, muitas vezes, ainda se tem, sobre uma mulher preta. Poder ver uma mulher negra sendo advogada ou médica em uma novela é algo muito recente. Porque a representação [de Tia Nastácia] vem de uma organização de sociedade que colocou outras identidades sempre à margem”.

Essa distinção entre ficção e realidade vem também na importância da literatura para formar o senso crítico das pessoas. Fernanda relembra o momento em que leu Reinações de Narizinho, ainda na infância: “o que aprendi sobre o Brasil, com o choque de ver a descrição extremamente racista de tia Nastácia, foi muito mais marcante do que o que eu li nos livros que tentam falar especificamente e intencionalmente sobre o racismo no Brasil através das personagens. O livro não precisa e nem pode nos dizer o que é certo ou errado, e nem nós podemos esperar que o livro nos ensine o que é certo ou errado. Eu não li Reinações de Narizinho esperando que Emília me ensinasse como eu deveria pensar em tia Nastácia, mas foi o que me permitiu ver como muitas pessoas a viam, mesmo sem concordar e mesmo me chocando”.

Jacira Sampaio como tia Nastácia. Acervo/Globo

Quando vemos o jornal nas páginas dos livros

Com as explicações sobre imaginário nacional, estereótipos e a distinção entre ficção e realidade, podemos compreender que, muito do que conhecemos do Brasil é representado e simbolizado pela literatura. Outra forma de enxergar isso é na semelhança com eventos reais. Não à toa, podemos ver algumas questões e problemáticas reais do país representadas em páginas de livros, seja de forma proposital ou não. No livro “Torto Arado”, o autor, Itamar Vieira Júnior, propositalmente cria uma história na qual a escravidão contemporânea é o cenário. E faz isso para registrar e denunciar uma realidade brasileira. Já em “Reinações de Narizinho”, Monteiro Lobato introduz, de forma racista, que era (e, infelizmente, ainda é) muito comum na época, uma personagem negra e gera, no Brasil de mais de 100 anos depois, debates sobre preconceito racial, além de levantar discussões sobre o trabalho doméstico. 

Bibiana e Belonisia: trabalho escravo contemporâneo 

Para relacionar essa ficção com realidade, nos fazendo perceber o quanto do Brasil real influencia e é influenciado pelo Brasil da literatura, podemos ver o caso do livro Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior. Publicado em 2019, o livro traz a história das irmãs Bibiana e Belonísia, moradoras da região rural da Bahia, e aborda temáticas importantes como a luta pela terra, desigualdade social e papéis de gênero. Em uma fazenda na Chapada Diamantina, em uma comunidade de trabalhadores, as personagens vivem em condições de trabalho escravo contemporâneo. 

Os trabalhadores que convivem com Bibiana e Belonisia representam uma questão que é, infelizmente, ainda atual no Brasil. Sem salário e com o direito apenas de construírem casas de barro em pequenos terrenos da fazenda, a maioria sem documentação, sem saber ler ou escrever, vivem em situação análoga à escravidão. 

Vemos que esse cenário é parte da realidade quando lemos a Lista Suja do Trabalho Escravo. Desde dois mil e três, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) publica o documento que, quando surgiu, era semestral, mas passou por algumas irregularidades na publicação durante o governo de Michel Temer (2016-2019) e de Jair Bolsonaro (2019-2022). A publicação reúne os nomes e CNPJ de empregadores que foram flagrados explorando o trabalho humano. Atualizada em 2023, a lista conta com 289 empregadores denunciados. Vale destacar também que, só esse ano, foram mais de 1,2 milhões de trabalhadores resgatados em condições análogas à escravidão no Brasil. A realidade de Bibiana e Belonísia é, também, a realidade de pessoas reais pelo país. E a potência da  história e das personagens, mesmo que ficcional, é suficiente para falar sobre eventos concretos do Brasil. 

Foto: Giovanni Marrozzini

Tia Nastácia: as trabalhadoras domésticas do Brasil

Monteiro Lobato lançou “A Menina do Narizinho Arrebitado” em 1920, livro que, depois, foi incorporado no livro “As Reinações de Narizinho”. Foi aí que surgiu o famoso Sítio do Picapau Amarelo e, também, onde ocorreu a primeira aparição de Tia Nastácia. No livro, ela é apresentada como “uma excelente negra de criação” que vivia com dona Benta, avó de Narizinho, em uma casinha branca no meio do mato. 

As histórias do Sítio vivem no imaginário brasileiro. Tanto as narrativas lidas nos livros, quanto as assistidas nas adaptações para a TV. Nas telinhas, a personagem foi interpretada por Jacira Sampaio, na versão de 1977, Dhu Moraes, na versão de 2001 e Rosa Marya Colin, na de 2007. 

A criação de Monteiro Lobato influenciou na construção do imaginário nacional, como explicitaram Odailta Alves e Fernanda Barbosa. Mas a personagem de Tia Nastácia extrapola a ficção e também simboliza uma realidade. O Brasil é o país que mais tem empregadas domésticas no mundo, segundo dados de 2018 da Organização Mundial do Trabalho. O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) registrou que, em 2022, o Brasil contava com quase 6 milhões de trabalhadores domésticos. Eram 1,5 milhão de pessoas registradas com carteira assinada. Já os informais eram 4,3 milhões. Dentre os trabalhadores domésticos, 92% são mulheres, sendo 65% mulheres negras. 

No início de abril de 2023, a PEC das empregadas domésticas completou dez anos. Aprovado em 2013, a emenda garante direitos trabalhistas, como seguro desemprego, jornada de trabalho de oito horas diárias com no mínimo uma hora de descanso, seguro contra acidentes, dentre outros direitos básicos. A medida foi regulamentada em 2015, o que ampliou a garantia desses direitos. 

Apesar disso, as empregadas domésticas ainda enfrentam muitos desafios no país. Um dos exemplos mais claros das dificuldades aconteceu durante a pandemia da Covid-19, entre 2020 e 2022. Muitas perderam o emprego e, muitas das que mantiveram, se viram forçadas a seguir uma jornada perigosa, enfrentando os riscos de contaminação porque, caso contrário, não seriam remuneradas. É importante lembrar, também, que a primeira morte por Covid no Rio de Janeiro foi de uma empregada doméstica, que não foi dispensada do serviço e pegou o vírus de sua patroa, que havia voltado de uma viagem à Itália.

Que a literatura se entrelaça com a vida real, é inegável. E é fato que os personagens que lemos nos livros podem simbolizar e representar as pessoas do país. Tia Nastácia, Bibiana, Belonísia, João Grilo e Chicó são exemplos de personagens que, nas suas histórias, vivem em ambientes periféricos, lidando com problemas e desavenças que muitas pessoas, por todo o Brasil, convivem diariamente. Mas, sendo esses personagens símbolos de um país e estando tão estritamente ligados com um imaginário repleto de carinho e permanente revisitação, sempre aberto a questionamentos, encontramos na literatura um meio de conhecer um pouco mais sobre nossa sociedade e as pessoas que fazem parte dela. 

Tudo isso explicita o tamanho poder da literatura, tanto de influenciar a realidade (com o estabelecimento de um imaginário nacional), quanto de mudar essa realidade (explicitando os fatos, dificuldades e preconceitos sofridos).

Edição: Rafael Gueiros

“a obra literária vai dizer muito sobre o olhar que se tem sobre determinados grupos. Ainda hoje, o que muitas vezes se sabe sobre determinado período da história é a partir da literatura. Do teatro produzido pelos jesuítas, por exemplo, que não vai representar a realidade como era – porque é a realidade a partir de um olhar católico e branco, mas é o que se tem sobre aquele momento. As obras literárias são registros”