Por Laura Machado
Em meio a uma cena predominante masculina, as mulheres que cantam e dançam essa vertente do brega são representação de resistência
Vivo, ardente e intenso, o brega funk é mais do que um gênero musical derivado da transmutação e junção do funk carioca e do tecnobrega, é um movimento metamorfo que finca suas raízes em questões políticas, sociais e culturais. Nascido em berço recifense, o ritmo se espalhou pelo estado de Pernambuco e, mais tarde, para o Brasil, sendo sucesso com as letras provocativas, roupagem e atitude confiante.
Tendo seus mais diversos atributos positivos, o som e a dança que se envolvem no brega funk são vorazes e só fazem crescer diante do cenário musical, com diversos artistas fazendo shows pelo território nacional, lançando novas músicas e expandindo o gênero. Em um reflexo da sociedade, porém, as mulheres no brega funk ainda são poucas e o mercado parece não possuir as mesmas portas abertas de oportunidade para elas. Apesar disso, as mulheres estão lá, criando sons únicos, dançando pujantemente e acima de tudo, resistindo contra o sexismo na música.
Em entrevista ao Berro, a cantora e compositora Rayssa Dias e a dançarina e licencianda em Dança pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Clara Soares, ou apenas Clarear, compartilharam suas vivências dentro do mercado do brega funk, a realidade machista excludente e o olhar otimista – antes e acima de qualquer dificuldade – para um futuro mais feminino no brega funk.

Rayssa Dias, fotografada por Jéssica Maia (@jezzmaia)
Qual é a realidade do cenário do brega funk no Recife?
Rayssa Dias: O brega funk evoluiu bastante e eu costumo dizer que ele não é só um trabalho cultural, ele é um trabalho sociocultural. O brega funk traz esperança para a comunidade, é um grande impulsionador, está ali, tentando sanar as necessidades das pessoas que vieram de onde a gente também veio. Hoje em dia a cultura do brega funk é mais do que só o movimento cultural, inclui o trabalho social que envolve uma grande camada dentro de Pernambuco. O brega funk é isso. Dentro de Recife, o brega funk é algo impulsionador de sonhos, de vidas.
Clara Soares: Quando eu tinha por volta dos meus 18, 19 anos eu ia para o Marco Zero para dançar brega funk e era muito comum a gente ver vários sons rolando em partes da cidade, mas hoje em dia isso não rola mais e, quando acontece, está sempre tendo o empecilho policial, independente da proporção. Afrontava o sistema e antes de tudo eu queria trazer essa repressão que existe hoje em dia. Mesmo assim, eu vejo que o brega funk está tomando uma proporção bem grande, está tomando o Brasil, a galera já notou o brega funk. Uma coisa que tem acontecido é que estão existindo aulas de brega funk em outros estados, o que é muito massa, porque as pessoas que estão lecionando são pessoas com vivências nessa dança, que fazem parte desse movimento e por isso eu vejo o gênero hoje em dia com essa visão de que ele está tomando grandes proporções.

Clara Soares / Acervo pessoal
Como se dá a presença feminina no brega funk?
Rayssa Dias: Hoje em dia a presença das mulheres no brega funk é bem ativa. Antigamente não tinha isso, de existir mulheres no cenário. Quando eu comecei no brega funk eu pensava ‘caramba, não tem muitas mulheres cantando brega funk”, pensava: “porque não ter uma mulher cantando brega funk de fato, botando as caras, estar ali para representar?”. Então eu canto brega funk desde essa época e acompanhei a evolução de ver mulheres chegando na cena, o que é muito incrível. Hoje em dia as mulheres ocupam bastante espaço, mas ainda podemos ocupar mais, não para por aqui, ainda tem que evoluir mais.
Clara Soares: Existem figuras femininas, mas ainda é em uma proporção muito menor quando comparada às figuras masculinas. Quando tem essa representação, na música principalmente, eu acho que elas são muito apagadas, não geram o mesmo hype que os caras geram. Se tratando das dançarinas, rola muita sexualização e também desvalorização. São meninas extremamente talentosas, mas que muitas pessoas possuem aquela visão tradicional de que elas são vulgares… ao meu ver enquanto artista e pesquisadora da dança, tem um lado também da influência dessa dança, das movimentações femininas na dança também em outras expressões artísticas fora daqui. Inclusive, existe um campeonato em Lisboa onde tanto no ano passado quanto neste ano, eles colocaram aula de brega funk na grade, sabe? Eu acho que é muito interessante pensar o cenário atual a partir disso, poxa, estão em outro país tendo aulas sobre essa movimentação, isso é massa, é muito muito bom.
Tanto no âmbito pessoal e artístico, qual é a importância que o brega funk carrega para você? O que essa arte lhe comunica?
Rayssa Dias: Ao longo dos anos, isso foi mudando para mim, né? Eu noto que, conversando com você, por exemplo, até minha fala sobre o brega funk mudou. No começo, eu cantava brega funk porque não tinham pessoas como eu que faziam isso, era um cenário muito dominado por homens, não tinham mulheres. Havia um grande preconceito ainda para as mulheres gravarem suas músicas, fazerem seus sons… a Rayssa Dias daquela época estava ali querendo ocupar um lugar de mulher, dizendo que a mulher pode fazer o que ela quiser, independente de qualquer coisa, inclusive estar inserida nesse cenário. Quando eu comecei foi por conta disso, dessa necessidade de se ter mulheres no movimento do brega funk, mas hoje em dia já não é mais só isso, porque mulheres surgiram e ocuparam esse espaço. Hoje, Rayssa Dias no brega funk é algo maior, eu estou tentando profissionalizar mais esse trabalho que eu já faço a muito tempo, hoje o brega funk para mim foi algo muito impulsionador na minha vida, de mudança de vida, toquei em muitos eventos importantes que me possibilitaram levar o ritmo para outros lugares e para mim, o brega funk é vida, tem essa energia. Não tem como falar dele e a gente não imaginar uma cor reluzente, algo que traga essa energia gigantesca. É vida, esperança.
Clara Soares: Eu acho que o brega funk é cultura viva, cultura de favela viva. É um reflexo da gente tomando nosso lugar. Eu fico pensando na trajetória do brega funk, quando ainda nem era chamado assim, quando era chamado de brega nojento e vejo a evolução dele. Isso é de extrema importância para a gente, o gênero tem diversas referências daquilo que a gente vivencia na nossa cultura, é uma fusão, um grande combo e, para mim, é resistência, à existência e o manter dele. É resistência, é muito importante para a gente, Acredito que ainda não estão preparados para pensar nessa modalidade como objeto de pesquisa mesmo, académica e isso também é muito importante e uma responsabilidade da gente enquanto acadêmicos e praticantes da arte. Para mim, primordial é a existência do brega funk.

Rayssa Dias, fotografada por Jéssica Maia (@jezzmaia)
Você falou sobre hoje a presença feminina ser muito mais considerável dentro do gênero, sobre existir muito mais mulheres no brega funk, mas você ainda percebe machismo tanto por parte do público quanto pela indústria em si?
Rayssa Dias: Sim. Você vai para uma casa de show de brega, quantas mulheres você vê que cantam o brega funk, não o brega romântico, mas o brega funk, por exemplo? Poucas, então isso ainda é algo que temos que quebrar bastante. Outra coisa que você nota: As mulheres estouram capelas que viram hits, que todo mundo dança,que todo mundo canta, vai lá fazer a dancinha… e é a voz da mulher que está ali o tempo inteiro cantando, hitou, sabe? Uni-duni-te, por exemplo, foi uma música que hitou, que era uma mulher negra que estava ali cantando, só que eu não vejo essa mulher ganhar a visibilidade que o homem ganha, sabe? Não é a mesma coisa, não é o mesmo impacto. Eu acho que ainda tem muito o que evoluir ainda, não só a situação dessas mulheres que estão ocupando as lives, as casas de eventos, que estão nas casas de show. A gente ainda precisa quebrar muito desse machismo que ainda existe no meio do brega e eu acredito que com o tempo isso vai mudar, mas acho que é necessário falar sobre isso, sobre a ocupação de mulheres nas casas de show, como as mulheres não têm tanto espaço nesses lugares. Mulheres pernambucanas também, ainda tem poucas mulheres, mas essa necessidade de ter mulheres fazendo o corre, necessidade da mulher ser mais abraçada pelo movimento, da gente fazer um som e ser reconhecida por aquilo, da gente ser contratada pelas casas de show… essa necessidade ainda é muito grande para as mulheres dentro do brega. Por exemplo, um cara estoura um som e faz seis, sete shows em uma semana, enquanto uma mulher estoura uma e não faz show nenhum. Isso acaba acontecendo muito e desmotiva as mulheres, acho que o brega funk tem mais do que evoluir e eu espero mais do brega.
Clara Soares: O machismo é bem pesado. É desvalorizado porque, primeiro existe essa sexualização em cima do rebolado e um corpo que rebola já é desmerecido e isso é ainda muito explícito. A gente pensa que com o passar do tempo isso diminuiria mas segue bem ruim, a ponto de você postar um vídeo dançando na sua rede social particular e ainda receber mensagens de pessoas que você nunca viu, não sabe nem quem é, achando que tem essa liberdade de chegar em você de maneira bem invasiva só porque você postou um vídeo dançando, sabe? Às vezes é assustador, nós nos apresentamos em lugares públicos, existe uma performance e é uma mistura de medo com desconforto que isso traz, mas que ao mesmo tempo não me impede de continuar. A dança é uma manifestação artística, não é um convite. Vão precisar engolir de um jeito e de outro porque eu não vou parar de dançar, de fazer isso. Vão precisar se colocar no seu lugar, porque esse corpo não te pertence e você não tem o direito sobre ele. Isso não é um convite, eu não quero que você vá até mim por causa disso. É um misto de resistência, de querer bater de frente com medo e receio. Eu e as meninas que praticam dizemos ‘bota a camisa’, por exemplo, quando estamos saindo dos treinos, treinamos de short e top e falamos isso porque não sabemos o que vai acontecer na volta para casa, volta para a faculdade.

Clara Soares / Acervo pessoal
Para finalizar, queria perguntar a você sobre as letras. Muitas vezes as letras do brega funk exploram a sexualidade, mas com o grande número de homens na indústria, isso acaba sendo muito voltado para o olhar masculino. Qual é a importância de existirem artistas mulheres, tal qual você, que trazem o brega funk com o olhar feminino? E não apenas em relação à sexualidade, mas a todos os assuntos que foram comumente cantados por homens, sendo trazidos agora pela perspectiva de mulheres.
Rayssa Dias: Então, essa sexualização do corpo feminino e da mulher no brega funk ainda é muito difícil de se tirar, mas ano passado eu lancei uma música com Vyvona, Nós é a gestão, que não é uma música para falar mal de outra mulher ou falar só de putaria, a gente fala sobre a gente tomar essa posição, sobre nós estarmos ocupando esse espaço, tomar a frente do seu role, de fazer acontecer. Foi uma música que quebrou muitas barreiras e eu acredito que ainda precisamos quebrar muito mais, mas foi uma música que quebrou muitas barreiras em termos dessa sexualização feminina tão forte ainda que o brega tem. Eu acho muito necessário a gente trazer mais isso no brega, apesar de ser difícil, porque as pessoas consomem a putaria no brega, então é muito difícil tirar ela, mas dá pra ter uma mudança gigantesca no meio do brega funk. Já faz um tempo ai que estamos trazendo a mesma coisa, mas tem outras mulheres querendo trazer. O brega pop , por exemplo, é uma vertente que está bem forte, o brega está se tornando outras vertentes, tem o brega com uma pegada no techno… o brega hoje em dia não é só brega, está englobando outras coisas, está se tornando múltiplas coisas e se a gente parar para observar isso, vemos que ele está em constante evolução. Vai vir algo muito massa, muito legal. Eu também quero ver essa evolução e trazer isso, com o tempo, com a tecnologia, tudo vai mudando, vai se adaptando. Eu acho que o brega funk putaria, em si, talvez não acabe, porque é um som raiz que a periferia ouve muito e gosta de ouvir, inclusive, mas é algo histórico, que não vai deixar de existir, mas vai se transformar em várias vertentes. O funk por exemplo, hoje tem uma versão de funk consciente, sabe? O brega está sempre se reinventando.
Clara Soares: Eu acho importante quando as artistas trazem uma letra mais afrontosa, nem sempre se tratando da sexualidade, mas quando tratar desse tema, se colocar em um local de poder e de liberdade de dizer que ela também pode fazer certas coisas e que possui liberdade de sentir. ‘Essa menina está cantando desse jeito, falando isso, nossa, isso é tão errado’, algumas pessoas pensam, mas muitas vezes a artista só está falando sobre uma experiência própria, se colocando em uma posição de poder sexual. Essas coisas não são legais à vista do nosso sistema machista. A mulher deve sim se colocar nesse lugar de poder, muitas vezes de empoderamento e não só no lado sexual da coisa, mas de trazer outro tipo de letras nas músicas mesmo, que empoderam. Infelizmente, são justamente essas que não hypam, sabe? São justamente essas que não avançam muito na popularidade, porque talvez não venda, não atraia o público. Eu sinto que isso também é uma forma de não fazer reverberar.
Edição: Rafael Gueiros