Muribeca — A memória, a revolta e o vazio

Por Laura Martiniano

Aquilo que somos é fruto de uma série de fatores, entre eles, onde vivemos e as lembranças que construímos dentro desse meio. Abandonar um lar não é uma experiência fácil: ela pode vir acompanhada de dor, melancolia, nostalgia e medo, especialmente se esse desamparo não for uma escolha, mas sim, uma imposição.  

Na Região Metropolitana do Recife, existem espaços que carregam o trauma do abandono. Construções desertas, lares desolados e grandes vazios que trazem, em suas ruínas, fragmentos da história de muitos pernambucanos que foram vítimas da especulação imobiliária, da periferização e da negação do direito à cidade. O bairro da Muribeca, no município de Jaboatão dos Guararapes, é um desses lugares.

O Conjunto Muribeca foi construído pelo Banco Nacional de Habitação em 1982 e consistia em um aglomerado de 70 prédios que tinha como objetivo realocar, em 2.240 unidades habitacionais, uma parcela da população do centro do Recife na periferia. Em 1986, os primeiros problemas surgiram, já que um dos blocos corria risco de desabamento devido a suas muitas rachaduras, tendo sido demolido em 1995. 

No ano de 2012, a Caixa Econômica Federal, que substituiu o BNH, foi condenada a reconstruir os imóveis na mesma área, mas isso nunca aconteceu. Pelo contrário, em 2014, os outros 69 apartamentos foram interditados e, em 2019, demolidos, apesar da muita luta da população.

A memória

A morte física do conjunto aconteceu gradualmente, enquanto os moradores restantes assistiam seu lar, aos poucos, se tornar um bairro fantasma. Apesar do desaparecimento da estrutura da comunidade, a região permanece viva na memória dos antigos habitantes dos blocos. 

O esquecimento é perigoso e tem o poder de enfraquecer ou apagar histórias, por isso, surge a necessidade de encontrar uma forma de eternizar as lembranças e os sentimentos que dão vida ao mundo. Com isso em mente, Camilo Soares e Alcione Ferreira tiveram uma ideia: transformar a narrativa, as emoções, as memórias e as conexões dos moradores da Muribeca em um documentário.

Soares é fotógrafo, diretor de fotografia e professor do curso de cinema da Universidade Federal de Pernambuco. Ferreira é repórter, já foi fotojornalista do Diário de Pernambuco e conquistou diversos prêmios com seu trabalho com fotografia, como um Vladmir Herzog de Anistia e Direitos Humanos. 

‘Muribeca’ estreou nos cinemas brasileiros no dia 2 de março deste ano, com a produção da ‘Descoloniza Filmes’. No Recife, o documentário esteve disponível nos cinemas da Fundação do Derby e do Porto Digital.

Pôster do documentário Muribeca, dirigido por Alcione Ferreira e Camilo Soares

Camilo Soares conta que já tinha um contato anterior com a Muribeca antes da ideia de produzir o documentário. Tanto ele quanto Alcione Ferreira acompanharam o processo imbróglio jurídico que envolveu o conjunto e observou a situação de insegurança em que os habitantes do local foram inseridos. “Surgiu essa vontade de entender, retratar e colocar a questão sob o ponto de vista dessas pessoas, de maneira que fosse compreendido que sua luta era, claro, por moradia, mas também por memória e pela preservação da sua história de mais de 30 anos”, relata o diretor.

A ideia dos dois partiu de suas respectivas vivências pessoais. Ambos já tinham interesse em mergulhar no tema de urbanismo imaterial e direito à cidade. “Eu morava vizinha ao conjunto, no bairro de Prazeres, também no subúrbio de Jaboatão. Tínhamos amigos em comum naquele lugar, a exemplo de Flavão e Miró, que aparecem no documentário.  Começamos a conversar sobre fazermos algo sobre essa relação, que já observávamos no passado, um lugar em que as pessoas construíram uma rede forte de  afeto por estarem convivendo na mesma comunidade”, registra Alcione Ferreira.

De acordo com Soares, a ideia de filmar o documentário foi bem aceita pela comunidade. Os diretores explicaram aos habitantes como fariam as filmagens, a montagem e o processo de distribuição. Ferreira acrescenta: “Os moradores e moradoras trouxeram, a partir de suas experiências pessoais, o que sentem e como veem o lugar, os vizinhos, as dinâmicas. Através de suas impressões elas e eles vão construindo um álbum ampliado de família”.

Apesar do conhecimento prévio da história do Conjunto Muribeca, os cineastas passaram por diversos processos de aprendizado ao longo das filmagens do documentário. “A gente já tinha um roteiro, uma ideia pré-concebida. No começo queríamos fazer um curta-metragem, mas chegando lá percebemos que um curta não daria conta de uma trajetória tão rica e complexa. A partir disso, vimos também que nosso plano pré-concebido não poderia afirmar o que era a realidade, e que deveríamos permanecer mais abertos para as coisas como elas vão se apresentando”, diz o fotógrafo.

‘Muribeca’ foi exibido em diversos festivais nacionais e internacionais, a exemplo do CinePe e do Festival Internacional de Documentários de Buenos Aires, conhecido como Fidba. Para Alcione Ferreira, levar a história da comunidade ao mundo pode contribuir com a ampliação de debates em relação ao direito à cidade, levando em consideração o afeto das pessoas. “Não há como decidir sobre o destino das vidas de tantas famílias ignorando suas subjetividades, suas autonomias. Levando Muribeca para outros lugares pudemos sentir, a partir da recepção do filme, como esse debate do direito ao pertencimento coletivo está se movimentando em outras comunidades. E isso é importante para que mais comunidades possam se comunicar, trocar ideias, experiências e pensar estratégias de enfrentamento à ameaça de apagamento de indivíduos e suas memórias. As instâncias do poder público precisam considerar as dimensões de afeto das populações”, finaliza ela.

A Revolta

As memórias representam uma parcela significativa do que faz uma comunidade permanecer viva. Entretanto, é preciso mais do que afeto e lembranças para reerguer ruínas. A produção do documentário ‘Muribeca’ foi abraçada por pessoas e instituições que se propuseram a ajudar a equipe e colaborar com o projeto. Entre os participantes, está a ONG Somos Todos Muribeca.

A história da comunidade vai além do que é mostrado nas telas. Por trás das câmeras, moradores lutam diariamente pela preservação do seu lar e pelos direitos do seu povo. Há uma trajetória expressiva de batalhas e revoltas, protagonizadas pelos habitantes da Muribeca.

Gravura em uma das paredes da ONG Somos Todos Muribeca.

O Somos Todos Muribeca surgiu em junho de 2015, com o objetivo de erguer um espaço de reflexão e debate na comunidade, além de desenvolver projetos e políticas públicas voltados para a conservação da moradia, meio ambiente e a sustentabilidade no meio urbano e periférico. A instituição foi formada por filhos de antigos moradores dos apartamentos.

A ONG tem como missão promover direitos por meio da organização comunitária, tendo como foco o direito à cidade, a educação política, social, ambiental, financeira e empreendedora; a saúde, o antirracismo, a anti-LBGTfobia e  a igualdade de gênero.

Fachada da sede da ONG Somos Todos Muribeca, localizada próxima ao antigo conjunto.

Charles Henrique, Marcelo Trindade e Andréa Costa fazem parte da direção do Somos Todos Muribeca e conversaram com O Berro sobre sua história e ações. 

Entrevista com representantes da ONG Somos Todos Muribeca

O vazio

No filme ‘Muribeca’, uma das entrevistadas compartilha seus pensamentos, chama sua então moradia de “cemitério de pessoas vivas”. O conjunto não existe mais. Suas edificações, agora, dão lugar a um vazio, que é encarado diariamente  pelas pessoas que restaram na comunidade. Apesar da morte física e da ruína de parte do local, o bairro vive. Muitas famílias reconstroem, aos poucos, o seu lar, ao redor dos antigos blocos.

Terreno do antigo Conjunto Muribeca, demolido em 2019.

.Atualmente, Marcelo Trindade estima que há entre 5 e 8 mil habitantes no bairro. Muitos deles vivem em casas construídas ao redor dos blocos, e a comunidade, mesmo que enfraquecida pelos eventos passados, continua lutando.  As lembranças estão vivas.

Podcast sobre memórias do Conjunto Muribeca

Edição: Rafael Gueiros

No filme ‘Muribeca’, uma das entrevistadas compartilha seus pensamentos, chama sua então moradia de “cemitério de pessoas vivas”. O conjunto não existe mais. Suas edificações, agora, dão lugar a um vazio, que é encarado diariamente  pelas pessoas que restaram na comunidade. Apesar da morte física e da ruína de parte do local, o bairro vive. Muitas famílias reconstroem, aos poucos, o seu lar, ao redor dos antigos blocos.