Sou padrão e carregada de vazios pela inexistência de um livre arbítrio do belo

Foto: Amanda Remígio
A experiência humana de ser uma mulher da era tecnológica, com a influência crescente da inteligência artificial no padrão de beleza feminino é o cerne desta insuficiência. Sinto-me assim não por escolha, mas pelo lembrete diário de que nada do que fui ou serei poderá um dia se enquadrar neste ideal de perfeição. Esta, inalcançável, é esculpida pelo que não existe (algoritmos).
É confuso ter a consciência de que meu conceito de belo não me pertence. Apesar da lucidez que me permite tecer críticas a este mesmo padrão, me vejo presa numa coreografia vertiginosa de superficialidade. Onde está meu livre arbítrio?
“Não possuímos nem o corpo, nem uma verdade – nem sequer uma ilusão. Somos fantasmas de mentiras, sombras de ilusões”- Fernando Pessoa
O poeta nunca esteve tão certo, vivemos um corpo de ilusões. No mundo onde os algoritmos ditam o que é bonito, as mulheres vivem à sombra de sua própria autoimagem, ou no caso, a sombra da imagem que nunca terão. Pelo menos, fora das telas. Somos fantasmas de mentiras, assassinadas pela perfeição.
O fundador do racionalismo moderno, o filósofo René Descartes (1596-1650) faz a relação entre liberdade e o conceito de livre-arbítrio. Para ele, o ser humano é livre enquanto pode escolher fazer ou não alguma coisa sem ser coagido por força exterior. Eis então um questionamento: Na sociedade em que vivemos, sendo os algoritmos e a inteligência artificial essa força exterior que nos direciona para a imersão quase que obrigatória em um padrão de beleza, existe o livre arbítrio?
Eu acho que temos medo de morrer. Para Bauman (2008), a invisibilidade é a morte. Na era da IA e da modernidade líquida, a busca incessante pela validação de ser algo ou alguém através dos padrões de beleza cria esta armadilha. Como dizia Durkheim, “o homem é produto do meio”. Assim, somos reféns dos algoritmos, produtos da comparação com o irreal.
Algoritmos e padrão de beleza
A inteligência artificial que compõe os algoritmos de redes sociais, como Instagram, e motores de busca, como o Google, desempenha um papel crucial na personalização do conteúdo exibido aos usuários. Esse é um ponto importante para entendermos a falta de livre arbítrio.
Ao direcionar imagens que se alinham a estereótipos estéticos convencionais, esses algoritmos contribuem com a disseminação de um ideal de beleza. Assim, associa-se a perfeição a um corpo saudável, magro, jovem e, principalmente, de tonalidade branca, tudo baseado em padrões anglicizados.
Façamos uma experiência. Pesquise as seguintes palavras na busca do Google:
- Magra
- Beleza
- Liso
Todos os resultados apresentados pela inteligência artificial dos motores de busca pendem para uma imagem feminina dentro dos padrões de beleza que já citamos. Mas por que isso acontece?
Exportamos nossos preconceitos. A inteligência artificial replica o comportamento humano, ou seja, com o avanço da sociedade no mundo digital, a presença dos problemas sociais também passaram a fazer parte do virtual. Mas isso não se limita só ao que nos é direcionado. Somos os produtores do nosso sofrimento, reproduzimos este padrão irreal.
Acessibilidade tecnológica
O Photoshop nem é mais necessário. Para além dos aplicativos cada vez mais modernos, os filtros com mudanças faciais e corporais já estão disponíveis nas próprias redes sociais. Vemos diante de nossos olhos a acessibilidade tecnológica e a inteligência artificial sendo usada na construção do inacessível. Entramos numa espiral de sofrimento, onde por não conseguir alcançar um padrão, nos rendemos às facilidades tecnológicas para sustentar a ideia, pelo menos no virtual, que não é tão inacessível assim (mesmo que de fato seja).
O corpo real está morto. Essa foi a constatação do filósofo alemão, Dietmar Kamper (2011). Ele pontua que a cultura midiática de autorreferencialidade excessiva, a qual vivemos, demonstra esse desejo pelo imaginário. Assim, o corpo que está vivo é o corpo das imagens, e cultuando uma imagem perfeita, refutamos o nosso próprio corpo. O doutor em comunicação e psicologia Rodrigo Sanches explica o conceito de Corpus Alienum, que se relaciona com a ideia de Kamper.
“Se eu preciso me retocar para ser visto em um outro universo que não é o da realidade, é porque eu não estou gostando do que eu vejo. É assim que a inteligência artificial cria o que chamamos de corpus alienum, o corpo alienado. A imagem do corpo belo, feminino, está alcançando o status, isso vai ser aprimorado com a inteligência artificial, o status de um ET, mas que é vendido para nós como belo.”
É uma doutrina a ser seguida. Rodrigo explica que o conceito de belo e inacessível que compreendemos na atualidade não surgiu por acaso. Fomos ensinadas a nos massacrar pela comparação com a imagem distorcida.
“A publicidade, ela sempre alterou o corpo feminino. Nas propagandas, o belo era a mulher de corpo magro, pele clara e na maioria das vezes cabelo liso, etc. Há relatórios da ONU sobre a publicidade brasileira que apontam esses mesmos aspectos em relação ao corpo feminino.” Ele aponta que o primeiro estereótipo é o do uso do Photoshop.
Ainda de acordo com o pesquisador, quando esses recursos saem das capas de revistas e se tornam acessíveis à mulher dita comum, cria-se um ideal de adequação. Assim, com poucos cliques todos normalizam o ato de alterar a própria imagem no universo das redes sociais.
Em 2019, por exemplo, o Instagram anunciou uma medida para remover filtros que simulavam cirurgias plásticas e adicionou uma ferramenta de denúncia aos que violavam as políticas da rede. Quatro anos se passaram e não houve mudança significativa. É cotidiano lidar com imagens cada vez mais distorcidas de conhecidos passando pelo feed. A normalização desses padrões inalcançáveis cria um desejo irreal, e é assim que a busca pela perfeição sai das telas e chega ao bisturi.
A tortura estética
De acordo com a pesquisa da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS), o número de procedimentos cosméticos, como preenchimentos e cirurgias plásticas, aumentou significativamente nos últimos anos, em parte devido à influência das mídias sociais. Além disso, o Brasil é o que mais realiza essas intervenções em todo o mundo.
É possível ver essa mudança na prática. Essa é a vivência da dermatologista Virgínia Paiva, especialista em procedimentos estéticos.
“A gente percebe uma procura muito maior. A maioria são mulheres após os 30 anos e já chegam com essa visão de que existe o rosto perfeito. E aí a pessoa quer fazer procedimentos que façam com que ela tenha um rosto parecido com aquele que é considerado ideal. Tem sido muito comum eu negar fazer procedimentos”.
Ao ser questionada sobre qual seria o padrão almejado pelas mulheres em seu consultório, a médica respondeu que é comum ver mulheres que já estão dentro de um ideal de beleza buscarem por mais modificações.
“Muitas já chegam com aquele rosto de boneca e querem bocão de Angelina Jolie. Você sabe que aquilo não vai ficar esteticamente bem, que não combina, mas como o bocão é uma coisa que é vista na internet como o belo, então às vezes a paciente quer, sabe? Isso é uma das coisas que eu mais nego”, finaliza.
Vamos fazer uma comparação com o que foi revelado pela dermatologista.Usei a inteligência artificial através do site midjourney.ai.ai para criar uma imagem do que é considerado uma mulher bonita. A pesquisa se limita a estas palavras. Por questões éticas não detalhei mais informações e deixei que o algoritmo confirmasse minhas suspeitas.
É notório que temos traços finos, e claro, o bocão.
Também não perdi a oportunidade de tentar entender o que a IA classificaria como uma mulher feia.
Tudo o que posso dizer diante destes resultados é que somos a rasura mal traçada de nossos próprios preconceitos.
Um relato de hipocrisia
Apesar da hipocrisia de almejar pertencer ao ideal de beleza tanto quanto qualquer outra mulher, me dou ao direito da ignorância por compreender que tudo isso é maior que uma escolha, é uma violência diária.
O fim dessa história não é feliz. Não esperem um discurso de “temos que nos libertar dos padrões de beleza e nos aceitar”. Eu não o fiz. Não há vergonha de admitir, sou padrão e carregada de vazios pela inexistência de um livre arbítrio do conceito de belo.
Sou um pedaço do retalho de todas nós, compelidas a perseguir o inalcançável, mergulhando em uma espiral onde a busca pela perfeição é o nosso purgatório. É possível ver o céu e sentir o ardor de viver o inferno que é ser uma mulher ordinária, em um mundo de ordinárias trajadas de máscaras milimetricamente usadas para disfarçar a dor da perfeição.
Somos paramentadas de uma vulnerabilidade, deformadas por nós mesmas.Somos fantasmas de mentiras, sombras de ilusões.