Com a expansão ainda maior da inteligência artificial se abre questionamentos e reflexões sobre porvir, futurações e novos horizontes para as pessoas negras.
E percebi ali, revisitando todas as minhas memórias como arquivos em tela diante dos olhos enquanto abraçava minha mãe que
o cometa nunca foi um cometa, ele era uma isca para nos encontrar,
um buscador, estivéssemos na África ou nas diásporas.
Trecho do livro Sankofia: Crianças vermelhas, Lu Ain-Zaila (2018)

Já almejou viver em outra realidade? Em um lugar diferente, com outros povos, ambientado na mitologia negra em cenários utópicos de ficção científica? Essas são algumas das visões do afrofuturismo: tomar as rédeas de suas histórias e serem colocados em primeira pessoa, como protagonistas de suas vidas e do novo mundo que está sendo criado. Por meio da ficção, o movimento busca especular diferentes perspectivas do mundo que divergem do real e de importantes maneiras. As histórias, na verdade, ajudam a reconstruir a ancestralidade e o afrocentrismo unindo elementos do tempo: o passado, o presente e o futuro.
Com a expansão ainda maior da inteligência artificial se abre questionamentos e reflexões sobre porvir, futurações e novos horizontes para as pessoas negras. A expressão afrofuturismo foi cunhada no início da década de 1990, por Mark Dery (1994), nos Estados Unidos, para caracterizar as criações artísticas que exploram futuros possíveis para as populações negras por meio da ficção especulativa – gênero da ficção que busca especular mundos que diferem do real de várias e importantes maneiras.
Historicamente, as pessoas negras foram colocadas como coadjuvantes e figurantes e isso foge da etimologia do significado literal e alcança outras nuances. Seja na política, na tecnologia, em posições de poder e até nas artes, a raça sempre foi um fator determinante para a distribuição de sucesso, poder e notoriedade. No cinema, ao longo dos anos, as referências do que temos enquanto papéis famosos colocam pessoas negras em posição de melhores amigos leais e que ajudam os protagonistas brancos.
Um sucesso do cinema norte-americano exemplifica isso: A carismática Dionne Davenport (Stacey Dash) viveu a melhor amiga de Cher Horowitz (Alicia Silverstone) em As Patricinhas de Beverly Hills (1995). Durante todo o longa-metragem, é impossível não notar que Dionne Davenport rouba a cenas diversas vezes enquanto Stacey mal tem sua história contada ou desenvolvida.
Por outro lado, a figura da pessoa negra também é atrelada a estereótipos e arquétipos sociais diretamente ligados à criminalidade, morte e tráfico de drogas. Conforme pesquisa realizada pela Paramount Global, 23% dos negros brasileiros se sentem representados como criminosos em filmes e séries. Ainda de acordo com o estudo, 52% dos indivíduos que toparam participar do estudo se sentiram mal representados, afirmando que falta precisão em como o grupo a que pertencem é retratado no audiovisual.
Além das ficções e obras cinematográficas, a representação de pessoas negras de forma geral é uma problemática atual que extrapola limites geográficos e de linguagem em diversos países na atualidade. Na inteligência artificial, já se existe um conhecimento de que as plataformas de criação de imagens (OpenAI, Stability AI e Midjourney) têm avatares e criação de imagens com cunho racistas e muitos profissionais estão se deparando com esta lamentável realidade. Esses casos abrem discussões a respeito de retrocesso e avanços, de como o negro vai ser colocado no mundo e de quem controla o maquinário e a própria IA.
Indo de contra a maré com a realidade posta, está o afrofuturismo, movimento formalizado há mais de 30 anos que busca retomar a pena, pincel, a caneta, o lápis e reescrever suas narrativas tomadas de forma violenta por anos.
Carine Vieira, artista visual, arte educadora, graduanda em letras pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), criadora da Artemísia, onde desenvolve seu trabalho para criar narrativas de protagonismo negro, explica que o afrofuturismo está ligado a identidade e ancestralidade negra e sua conceituação vai além do que se é entendido no senso-comum.
“É um resgate da identidade forjada pelo retorno ao passado, à ancestralidade, para pensar futuros em que os corpos negros não estejam ligados à subserviência, à solidão, desfazendo o palco da dor para tecer novos territórios. Então, o afrofuturismo seria uma ode à existência plena, repleta de potencialidades e espaços de construção”, afirma Carine.
Quem está por trás das novas ferramentas tecnológicas de IA?
No Brasil, embora os negros sejam maioria entre a população, pessoas não brancas continuam sendo associadas e consideradas minoria política e social. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 56,1% dos brasileiros se declaram negros. A informação, divulgada pelo órgão em 2020, mostra que mais da metade da população se declara negra, preta ou parda. Porém, no campo da tecnologia, ainda há um caminho de tartaruga no que se diz respeito a representatividade de negros no cenário cibernético. Essa informação abre margem para reflexão sobre quem fomenta a inteligência artificial e para quem.
O levantamento promovido pela REDE Negra em Tecnologias e Sociedade, com apoio da Fundação Mozilla, demonstra a presença da manutenção do racismo estrutural e por consequência falta de pessoa negras em locais especializados em tecnologias digitais que utilizam processos inovadores como automatização, algorítmicos e IA.
