Com possibilidades cada vez mais diversas e acessíveis da inteligência artificial, a utilização constante da aprendizagem de máquina pode alterar o senso humano do prazer pelas pequenas conquistas?
De tão cansada de procurar, Alice desiste e se entrega à facilidade inevitável e tão atraente que estava à sua frente o tempo todo: ao invés de quebrar a cabeça depois de um longo dia com mais de 20 crianças de 5 anos de idade levando sua sanidade ao limite, a pedagoga aceita um dos filmes recomendados da própria Netflix. Apesar de achar aquilo demasiadamente conformista, também considera particularmente interessante, afinal, “como eles conseguem me conhecer tão bem?”
Em grande parte do dia, a jovem professora de 25 anos atende pela alcunha de “Tia Alice”, mas além do tempo que passa dentro da sala de aula numa atividade que, mesmo nobre e cheia de amor, é demasiadamente desgastante, ela tem outras obrigações: planejamento de aulas, pós-graduação, afazeres domésticos e — não menos importante — relaxar, porque ninguém é de ferro!
Também não é mais de ferro (ao menos não estruturalmente) e há muito tempo, onde estão comportadas as inteligências artificiais. Diferente do que muita gente pensa, esses mecanismos não estão somente presentes em “robôs” dentro de grandes empresas ou centros de pesquisa. Estão, na verdade, mais perto do que a gente imagina — mais perto e bem mais presentes!
Sistemas de recomendação de filmes de plataforma de streaming que eu, você e Alice utilizamos são um exemplo bem simples disso.
Cada clique, cada termo pesquisado, cada série abandonada, quaisquer interações feitas na Netflix são dados e esse amontoado é analisado por algoritmos que conseguem extrair material capaz de mapear o comportamento do usuário, preferência e padrões dentro do que já foi assistido.
É a partir dessas análises feitas que a inteligência artificial consegue prever quais séries ou filmes um usuário pode gostar; e sem pensar duas vezes, esse conteúdo é recomendado para você.
Mas seria essa utilidade realmente benéfica e inofensiva? Um estudo feito com 285 estudantes universitários chineses e paquistaneses, publicado pela Revista Nature, um dos periódicos científicos mais importantes do mundo, em junho de 2023, revelou que “a inteligência artificial impacta significativamente a perda da tomada de decisão humana e torna os humanos preguiçosos”.
Segundo a pesquisa, a IA é a grande responsável atualmente por 68,9% da preguiça em humanos; a culpada, em 68,6% das vezes, em questões relacionadas à privacidade pessoal e segurança; e em 27,7% dos casos, a grande vilã causadora da perda da capacidade de tomada de decisão.
A humanidade vive o boom da inteligência artificial generativa. A todo momento surgem novas ferramentas que conseguem desenvolver textos, ou como o Midjourney, que geram imagens a partir de um input descritivo. Antes, a IA era mais conhecida por sua capacidade classificativa: tal coisa é um gato ou um cachorro, um pássaro, um avião…
É literalmente um boom. São mudanças tecnológicas que acontecem num ritmo tão frenético que a humanidade não consegue se preparar; elas ocorrem em tempo real e bem na nossa frente. Aproveitamos as benesses do momento sem nos preocuparmos com as consequências a longo prazo que essa substituição inofensiva pode trazer.
“Feito para [insira seu nome aqui]”
Em junho de 2020, pleno auge da pandemia da COVID-19, o Spotify, plataforma de streaming de música, podcast e vídeo, lançou campanha com o slogan “We know you better” ou, em tradução literal, “nós te conhecemos melhor” — frase que intitula esta matéria.
O objetivo da campanha, obviamente, seria o de angariar mais usuários para o serviço, mas a propaganda do jeito que a IA seria utilizada é a grande sacada do plano.

O diferencial do Spotify é a sua capacidade de vender como algo estritamente positivo pela sua possibilidade de adaptação ao perfil musical do usuário. Essa personalização pode acontecer de algumas formas. Eis aqui algumas delas:
- Caminho Diário: uma lista de reprodução é atualizada diariamente apresenta uma seleção de músicas e episódios de podcasts de notícias que o algoritmo do Spotify acredita serem as essenciais para o seu perfil. Em poucas palavras, um combo de música e informação: é como um rádio único que só toca na sua frequência.
- Feito para você: é, de fato, feito para você. O Spotify recomenda Mixes. São reunidas de cinco a seis playlists personalizadas com base nos seus hábitos de escuta, histórico de reprodução e preferências musicais. As músicas são agrupadas por gênero.
- Retrospectiva: a queridinha dos usuários! Todos esperam ansiosamente o final do ano para saber suas estatísticas de quantos minutos e segundos foram ouvidos.
- Match: uma seleção de músicas baseadas no seu gosto e de mais um amigo ou alguém especial; é também atualizado todos os dias.
Foi essa capacidade de personalização que levou a Psicóloga e Mestranda em Comunicação e Cultura na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Helena Strecker a desenvolver uma análise para entender de que maneira “a plataforma de música Spotify concebe e anuncia suas ferramentas de personalização algorítmica”.
Todas as suas descobertas foram apresentadas durante o 46º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (Intercom), ocorrido na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), em Belo Horizonte, de 5 a 8 de setembro deste ano.

Intitulado “Imaginários Algorítmicos no Spotify: Sistemas de Recomendação e a Promessa de Nos Conhecer Melhor do que Nós Mesmos”, o artigo de Helena discute as “ambiguidades que envolvem a promessa de ultra personalização”.
Estariam elas relacionadas em como a utilização constante da aprendizagem de máquina pode alterar o senso humano do prazer pelas pequenas conquistas? Para isso precisamos, primeiro, entender o que é auto realização e por que ela é tão importante para a experiência humana.
De acordo com a autora, é a vertente da psicologia humanista que considera a auto realização como “uma necessidade existencial humana, um postulado básico do desenvolvimento psicológico […] tão importantes para o ser humano quanto necessidades fisiológicas, como se alimentar, respirar e dormir, ainda que essas últimas sejam prioritárias”.
Ao longo da vida, no dia a dia, temos dificuldades — o que é completamente normal. Precisamos aprender a como amarrar o cadarço sozinhos, cortar um papel, aprender a cozinhar, dobrar as próprias roupas, escrever um artigo… e é “na superação de desafios ou dificuldades que está a oportunidade de crescimento pessoal, o que também pode nos levar a uma reflexão mais profunda sobre nossas próprias habilidades, nossas limitações, e como desenvolvemos estratégias próprias para superar as dificuldades”, afirma Helena.
“A dificuldade, portanto, é vista não como um obstáculo, mas como uma oportunidade de desenvolvimento pessoal e auto realização”, complementa a psicóloga.
Por mais coach que a frase seguinte possa parecer, são as dificuldades que nos fazem crescer como seres humanos. Nós nos conhecemos a partir do processo de superação. E é aí que começa o problema.
Helena explica que “a personalização ou recomendação algorítmica opera a partir da premissa de que os algoritmos seriam capazes de ‘conhecer’ ou ‘entender’ os usuários a partir de dados coletados nas nossas ações digitais, como cliques, curtidas, conteúdos consumidos etc”.
“Através dessa análise dos nossos dados de interação com as plataformas, os algoritmos seriam capazes de revelar qual música queremos escutar, no caso do Spotify, qual filme queremos ver, no caso da Netflix, ou qual livro queremos comprar, no caso da Amazon. Mais do que isso, as plataformas reivindicam que conseguem descobrir essas informações de forma mais autêntica, verdadeira e rápida do que nós mesmos”, continua.

Strecker chama isso de “processo de datificação dos sujeitos”. Esse fenômeno nos resume a dados — dados que são submetidos a análises digitais.
Ela comenta que trata-se de “uma lógica nova de produção de conhecimento sobre indivíduos e populações, uma vez que não somos vistos por aquilo que pensamos ser ou dizemos sobre nós mesmos, mas por tudo aquilo que pode ser medido ou calculado computacionalmente sobre nós. Em outras palavras, pelas “identidades algorítmicas” que nos são atribuídas”.
Mas essa datificação não fica restrita somente às redes, ela molda e afeta nosso comportamento. Deixamos de estar acostumados com as adversidades e não sabemos não saber. No final das contas, eles nos conhecem melhor.
Afinal, seremos menos criativos daqui pra frente?
Bem, esta é uma pergunta que só o tempo poderá responder. Por outro lado, nem só de contextos apocalípticos é alimentado o futuro dessa tecnologia. De acordo com Robson Cavalcanti Lins, doutor em ciência da computação e professor e coordenador deste mesmo curso na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), a nossa autonomia não será (ao menos não completamente) afetada.
“A criatividade sempre vai existir independente da inteligência artificial. As atividades repetitivas foram e continuam sendo substituídas pela inteligência artificial. No meu ponto de vista, o fato da IA ter a capacidade de substituir as atividades repetitivas significa que podemos dedicar nosso tempo para outras tarefas, como aperfeiçoar um determinado processo numa empresa”, afirma o professor.
Caminhando na toca do coelho
“Aonde fica a saída?”, perguntou Alice ao gato que ria.
”Depende”, respondeu o gato.
”De quê?”, replicou Alice;
”Depende de para onde você quer ir…”
(Alice no País das Maravilhas, Lewis Carroll, 1865)
De fato, a IA generativa ou sistemas de recomendação podem ser tanto uma bênção quanto uma maldição no que diz respeito ao nosso prazer pelas pequenas conquistas. Fazer uma pesquisa sozinho, encontrar uma música só com um trecho da letra que você ouviu rapidamente, escrever um bom texto para a escola ou faculdade, desenvolver a análise completa de um produto para o trabalho pode ser tanto uma experiência incrível quanto traumática.
Certo é que todo mundo tem prazer de fazer alguma coisa e certamente você não abrirá mão e deixará que uma inteligência artificial faça isso por você, seja cozinhar, aprender passos de dança, caminhar, fazer exercícios físicos, aprender algum instrumento musical afinal, nem todo mundo sente interesse nas mesmas coisas e a importância de pequenas conquistas é diferente para cada uma das mais de oito bilhões de pessoas que habitam na Terra.
Mas Alice, tal qual sua xará do país das maravilhas, só conseguirá traçar seu caminho quando descobrir a melhor forma de utilizar a inteligência artificial. Essa forma, de preferência, é uma que não é danosa e nem que deixa sempre ela escolher por você, mas juro que, de vez em quando, também não faz mal.