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O infinito particular de Sandro da Prata

GABRIELA AGRA

Uma bicicleta com o aro empenado. Era tudo o que Sandro tinha quando chegou à Comunidade do Pilar vinte anos atrás. Naquela época, ele não sabia, mas mudava para sempre seu próprio destino. Vindo do Alto do Pascoal, no extremo norte da cidade, ele achou amparo naqueles moradores da região central que até então eram completos desconhecidos. Pessoas que não lhe deviam absolutamente nada, mas que não hesitaram em abrir suas portas e corações. Pessoas que, assim como ele, precisavam batalhar pelo pão de cada dia e encontraram no calor humano a força para encarar a precariedade da vida nos barracos.

Na caminhada de Sandro, não tardou para que todo aquele acolhimento recebido se convertesse numa sensação de pertencimento. É que, enfim, ele encontrava seu lugar no mundo. E queria retribuir o Pilar por ter lhe dado isso. A forma encontrada foi se dedicando à comunidade: doando seu tempo e seus esforços em prol daqueles que tinham lhe estendido a mão lá trás. Em época de chuva, quando a água cobria as ruas e vielas, era com ele que todos podiam contar. Fosse limpando a lama ou colocando estrados de madeira para ajudar na locomoção do pessoal, sobretudo, das mulheres idosas que compunham a maioria da população.

Quem conversa com Sandro percebe na sua fala não só indignação, mas o desejo incessante de fazer cada vez mais pela comunidade que o acolheu. E foi guiado por esse ímpeto que ele também começou a levar os problemas vividos pela população para dentro da Autarquia de Urbanização do Recife, a URB. No início, ele levava chá de cadeira, mas com o tempo (e muita persistência) se tornou um rosto conhecido no órgão e logo os agentes da prefeitura passaram a procurá-lo quando precisavam ir ao Pilar. Agora, aos 53 anos, ele relembra com comoção esses dias e, mesmo usufruindo de uma vida melhor em um dos apartamentos entregues pela Prefeitura, mantém viva a inquietude que o fez chegar até aqui.

Sandro da Prata (Foto: Gabriela Agra)

É lá em cima, no último andar de um dos blocos residenciais até então construídos, que Sandro hoje em dia vive. Seis lances de escada são necessários para chegar ao apartamento que ele mostra com muito orgulho. Com cerca de 40 m², o imóvel materializa não apenas seus sonhos, mas uma parte significativa da sua história. É que, em 2011, ele foi um dos moradores chamados para trabalhar na construção dos prédios, oportunidade que agarrou com todas as forças. “Eu acho que Deus disse ‘oxe, Sandro ajuda muito, vive perto do povo, então tem que abrir uma porta para ele’, porque eu estava precisando muito mesmo. Eu não tinha nada.”

Mas o que era para ser apenas um trabalho de servente de pedreiro que garantiria uma renda fixa, se tornou um amontoado de experiências em diferentes áreas e um capítulo importante na sua trajetória. De ajudante de cozinheiro a vigia noturno, Sandro se distinguiu entre os colegas e trabalhou com tudo um pouco na obra. De certa forma, um reflexo direto da sua curiosidade e disposição para aprender coisas novas. “Em todos os trabalhos, eu estou. Só não gosto de ficar parado. Eu topo tudo”, afirma ele, que, antes das construções, já fazia diversos bicos para conseguir tirar seu sustento. Durante um tempo, inclusive, chegou a trabalhar como vigilante de rua, o famoso “guarda de apito”, nas ruas do bairro da Encruzilhada.

Com o fim das obras, a sede por novas experiências o levou ainda a fazer um curso de Bombeiro Civil, formação que faz questão de destacar mostrando sua carteira. Questionado sobre como essa mistura de habilidades contribui para ele ser quem é hoje, o “faz-tudo” do Pilar responde na ponta da língua: “É a vontade de ser o que a gente é. Eu provei a mim mesmo que eu posso fazer e faço. E faço tudo isso.” Seguindo a vocação multifacetada, hoje sua principal ocupação surpreende: quando não está em casa, acompanha como segurança cantores e MCs de brega funk em shows e viagens, o que já o fez percorrer milhares de quilômetros entre os mais variados cantos do Nordeste.

Enquanto no trabalho Sandro se recusa a se limitar a “caixinhas” e padrões, na música não é diferente. “Onde tem música, eu gosto. Eu não gosto só de sertanejo ou só de forró. Não, eu gosto de tudo. Eu gosto da música”, afirma. Troia, Nedved, Pedrinho do Recife, Barca na Batida, Daninho e o saudoso Biel Xcamoso são só alguns dos nomes de peso com quem ele trabalha ou já trabalhou. Mas tudo teve início, por volta de 2014, com o então adolescente MC Reino, hoje conhecido pelo sucesso “Dono da Porsche”, hit viral na internet com os versos “Bom dia, princesa / Por favor, sente na Glock”.

Naquela época, o cantor recifense estava no começo da carreira e não podia entrar nas casas de show desacompanhado devido à idade. Sandro, com a permissão da mãe do garoto, era quem ficava responsável por levá-lo às festas. Daí em diante, o morador do Pilar não parou mais e, com seu carisma, foi conquistando respeito e prestígio na cena brega funk. “Se eu chego numa casa de show com um MC e estiver outro no palco, ele para tudo e vem me abraçar, já fala logo ‘Sandro da Prata, Sandro da Prata’”, diz.

Sandro da Prata (Foto: Gabriela Agra)

Sandro Roberto Vasconcelos é o seu nome de nascença, mas Sandro da Prata é o apelido que condensa as múltiplas facetas do segurança de MCs, que também é Bombeiro Civil, vizinho, pai, marido e já atuou, como apontado neste breve texto, de vigia noturno, servente de obra e ajudante de cozinha. No Pilar, por exemplo, quem chega perguntando à vizinhança por algum Sandro imediatamente é interpelado pela resposta: “Da Prata?”. Isso porque, aonde ele vai, usa sempre uma corrente reluzente de prata com um risonho Chico Bento pendurado. “Aonde eu chego, eu não me identifico. Eu vou como o cara que eu sou, Sandro da Prata.”

No seu semblante, é visível o brilho nos olhos ao contemplar tudo o que construiu até aqui. Não só para ele, mas para a comunidade que o abraçou desde o início. Se hoje existe esse “cara que ele é”, é porque, lá atrás, “o cara que um dia foi” seguiu com a decisão de partir rumo àquela comunidade na região portuária do Recife quando tudo o que tinha era uma bicicleta com o aro torto. Um passado que faz questão de reafirmar e agora transforma em força motriz na batalha que nunca abandonou: a luta coletiva por uma vida mais digna para todos e todas. “Eu sou favela. Eu nunca deixei de ser. Eu estou aqui pela graça de Deus e pelo meu trabalho, mas eu sou favela. Eu tenho que estar brigando por todos.” E vai brigar até o fim.