O que explica a atual onda de conservadorismo no Brasil e no mundo
Quarenta e seis anos atrás, em 1976, Belchior encapsulou uma mágoa. Com apenas uma música, pouco mais de quatro minutos, ele cantou: “minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”. Se o sentimento de juventude pudesse ser descrito em uma única frase, essa certamente levaria o prêmio.
Afinal, a revolta dos mais novos é, até mesmo, biologicamente comprovada e explicada em fenômenos que aqui serão resumidos apenas como a terrível puberdade. Por isso, independente de gênero, classe, raça, religião, sexualidade ou qualquer outro recorte, quase ninguém entre os 15 e 20 poucos anos quer viver como os pais.
O problema é que não dá para fisicamente controlar a história, não tem como abrir uma agendinha pessoal e marcar “enquanto eu for jovem, viverei em revolução”, como quem agenda um cafézinho da tarde com os amigos. Os rumos da política nacional e internacional são decididos por forças muito maiores do que a vontade de se diferenciar dos mais velhos, os (para alguns) tão temidos conservadores.
Mas, se desde 76 os jovens cantam que “o novo sempre vem”, o que explica a onda conservadora que tem tomado conta do Brasil e do mundo? A ciclicidade histórica colocou uma pedra no caminho dos jovens da Geração Z? – todos que sofreram com a perda da TV Globinho ou nasceram entre 1995 e 2010, fica o adendo -. Esse, infelizmente, é um problema que não pode ser respondido só com um fio no Twitter ou um template fofinho no Instagram.
Antes de começar, vamos a um: “o que você verá nos próximos capítulos”, para explicar a linha de raciocínio que vai se desenrolar nas próximas etapas da discussão. Para isso, temos uma personagem: Julianna Valença. Com 22 anos, ela para se formar na faculdade de jornalismo e cresceu, por grande parte da vida, em uma família repleta de mulheres. Julianna também tinha uma irmã mais nova, que nasceu com uma condição grave de saúde, perto da época do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016.
Sem muitas condições financeiras, a família de Julianna se apoiou no direito universal à saúde, concedido constitucionalmente aos brasileiros pelo Sistema Único de Saúde (SUS), para custear os tratamentos necessários. Foi depois de passar longas semanas nos hospitais públicos, percebendo a diferença que aqueles aparelhos, gerenciados pelo Estado, fizeram na vida da irmã, que ela começou a se considerar progressista.
Julianna Valença, 22 anos // Reprodução: Arquivo Pessoal
Para Julianna, as ações dos governos progressistas são mais voltadas para as necessidades das camadas mais pobres da população, para os investimentos em serviços que acolham os mais vulneráveis . O que ela pensa não vem apenas de “fontes da própria cabeça”. Historicamente, o progressismo está relacionado com o movimento Iluminista, durante o século XVII e XVIII, que incentivava a ruptura de padrões sociais tradicionais pregando liberdade e igualdade.
Correndo o risco de que o texto agora comece a parecer uma questão do Enem, é preciso refletir: seria o conservadorismo o oposto da liberdade e da igualdade? Para Russell Kirk, filósofo político autor do livro “A mentalidade conservadora”, responsável por dar forma ao movimento ideológico conservador no pós da Segunda Guerra Mundial, “o conservador pensa na política como um meio de preservar a ordem, a justiça e a liberdade”. Ou seja, em termos de liberdade, todo mundo pensa igual (ou talvez nem tanto).
Enquanto a liberdade progressista tenta acompanhar as mudanças históricas e se adequar a elas, a liberdade conservadora busca manter as coisas como estão. Isso porque o pilar mais básico do conservadorismo faz referência à manutenção das instituições sociais tradicionais – a exemplo da família, das comunidades locais e da religião. O movimento é, além de tudo, marcado por enfatizar a importância da continuidade e da estabilidade das instituições, opondo-se às ondas revolucionárias e políticas progressistas.
De acordo com o Historiador e professor da Universidade Católica de Pernambuco, Helder Remigio, as raízes históricas do conservadorismo estão ligadas ao absolutismo monárquico, e para você que nunca teve uma fase obcecada com a história da realeza britânica, esse foi o período em que o poder emanava somente de uma única pessoa, época em que os reis eram considerados donos de um poder divino. Sim, as monarquias eram encaradas como um puxadinho de Deus na terra e, por isso, mereciam o poder soberano.
Foi também nesse conjunto de ideias que a religião entrou no meio do conservadorismo. Isso porque todo o sistema monárquico era sustentado por aparatos da religião católica. Afinal, se o Rei era supostamente amigo íntimo de Deus na terra, a Igreja tinha que dar o aval. O professor ainda explica que, embora os preceitos conservadores estejam ligados às monarquias absolutistas, foi só depois da Revolução Francesa que a divisão entre conservadores e progressistas ficou mais clara.
“É um momento histórico muito importante para pensar as dimensões do conservadorismo. Havia uma divisão muito nítida entre a direita e à esquerda. Aqueles que ocupavam a direita do parlamento eram os mais conservadores, os que ocupavam a esquerda, os mais progressistas”, explica sobre o uso dos termos para representar as correntes ideológicas.
Para o historiador, foi com o fim da Revolução Francesa que a burguesia começou a se desenvolver e incorporar preceitos da nobreza, defendendo a manutenção desses valores que contribuíram para a conservação do privilégio burguês. “É nesse sentido que o conservadorismo vai se fortalecer, a partir de uma classe social e do avanço do capitalismo, principalmente na Revolução Industrial”, acrescenta Helder.
Então, sim. Na prática, o conservadorismo foi solidificado entre as classes mais altas da sociedade, a burguesia e a nobreza. Dessa forma, os conceitos conservadores de liberdade são tocados por preceitos que englobam pautas éticas, morais e individuais, deixando de lado outras perspectivas que façam mais sentido com as queixas atuais da sociedade moderna.
Mas, voltando às alusões da música de Belchior, se são os outros que olham o passado e não enxergam a chegada do novo, por que o novo parece não ter chegado? Por que as novas gerações ainda parecem se agarrar aos ídolos do passado, e repetir o apreço por noções conservadoras, como demonstra o avanço da extrema direita no Brasil e no Mundo?
Para Helder, momentos históricos não se repetem, ou seja, o novo realmente sempre chega, porém, muitas vezes, ele chega sorrateiro, repaginado, diferente em algumas nuances, mas igual em muitos outros aspectos. “Na minha concepção a história está sempre em transformação, mas existem rupturas. É nessa perspectiva que nós percebemos que, por exemplo, no momento atual nós temos movimentos neofascistas, temos uma inspiração no fascismo para fortalecimento do conservadorismo e de pautas conservadoras nos costumes, amparadas no nacionalismo”.
Aqui, a fala do professor também toca em um ponto importante: ainda que a história não esteja sendo repetida ao pé da letra, o conservadorismo historicamente esteve ao lado de conceitos radicais da extrema-direita. O facismo na Itália de Mussolini, o Nazismo na Alemanha de Hitler e o Integralismo no Brasil de Vargas são exemplos de alianças duradouras entre conceitos conservadores com teorias extremistas.
Provavelmente, não será a informação mais bombástica do seu dia saber que regimes autoritários costumam ficar ao lado de preceitos conservadores. No Brasil, um dos motes usados pelo governo e campanha de reeleição de Jair Bolsonaro (PL) em 2022 foi o “Deus, pátria e família”, que tem origens fascistas.
Slogan do movimento Integralista brasileiro // Reprodução
A frase é uma versão do slogan do movimento fascista Ação Integralista Brasileira (AIB), criado na década de 1930. Entre os preceitos defendidos pelo movimento, estavam o cristianismo (católico), a unidade nacional, corporativismo, combate ao liberalismo e ao socialismo. Todos ideais que também são familiares aos conceitos defendidos pela classe política conservadora.
O problema é que esses regimes incluem algumas pautas conservadoras, normalmente relacionadas à defesa da moral e dos bons costumes, para buscar um apelo populista. Mas, na realidade, não são regimes conservadores, são fascistas. E se as referências históricas desse texto deixaram tudo parecendo uma grande questão do Enem, então aqui vai a resposta para o gabarito: o fascimo avança no Brasil e no mundo disfarçado de um conservadorismo ameno, interessado no bem comum.
Por isso, a distinção entre as duas correntes ideológicas é essencial. Quando um fascista se disfarça sob o véu do conservadorismo, ele tem passe livre para comandar com extremismos sem ser questionado. Para o cientista político Manoel Moraes o conservadorismo e o fascimo podem se misturar, mas não são codependentes.
“No fascismo, a utilização do populismo é fundamental porque há, na perspectiva dos fascistas, uma erosão dos valores morais da sociedade. Então, eles surgem como se fossem guardiões de uma moral e dos bons costumes”, destaca.
O que a juventude conservadora tem a dizer?
Saber diferenciar os movimentos é essencial para nomear a gravidade dos sistemas que estão sendo implementados no mundo. É simples, ao tratar a covid como uma gripezinha, um paciente pode morrer, ao tratar o fascismo como conservadorismo a democracia entra em estado grave de instabilidade. É preciso saber contra o que se luta. Nesse sentido, também entram as críticas dos próprios conservadores. Raul Batista tem 22 anos, é estudante de jornalismo e se considera um conservador. Para ele, a sua corrente ideológica está sendo interpretada de maneira errada por grande parte dos jovens de hoje em dia.
“Me considero uma pessoa conservadora sim, mas não do conservadorismo que muita gente no Brasil atualmente acha que é. Levo em consideração o verdadeiro conservadorismo político, originado por Edmund Burke”, explica.
Se até agora ainda não foram citados filósofos o suficiente, aqui vai mais uma explicação sobre outro europeu sofisticado. Burke enxergava o conservadorismo como “um princípio seguro de conservação e um princípio seguro de transmissão, sem excluir um princípio de melhoria”. O interessante da frase está na melhoria, que para Raul é um ponto essencial para o melhor entendimento do conservadorismo. A manutenção de valores chave, com as mudanças necessárias para o acompanhamento dos novos moldes sociais.
Em termos práticos, seria algo como a volta da moda da calça de cintura baixa, item carimbado nas fotos de juventude das mães da geração Z, que agora, com alguns ajustes e um novo público alvo, ainda continua funcionando para aqueles que querem aderir. Raul destaca que a má interpretação do conservadorismo como uma linha de ideias fascista e anti-democráticas se dá pela falta de interesse do aprofundamento dos discursos políticos no Brasil.
“Infelizmente, no Brasil, o conservadorismo está muito associado a pautas de costumes e pessoas como Jair Bolsonaro. Por esse ponto de vista, é natural que os jovens não queiram se associar a essa palavra ou a esse aspecto político”, assume.
“Se eu falar para uma pessoa o que ela imagina o que é ser conservador, ela vai dizer que é uma pessoa que contra aborto, contra a legalização das drogas, coisas desse tipo. Mas, não é só isso. O Partido Conservador da Inglaterra, por exemplo, tem alas que defendem a legalização de algumas drogas, a maioria dos parlamentares do partido também é pró-aborto. As coisas são um pouco mais complexas”, explica.
Raul Batista // Foto: Vitória Floro
Existe espaço para revolução?
O avanço das teorias fascistas, disfarçadas de conservadorismo democrático, já toma conta de boa parte do globo. Por isso, resta saber se o futuro realmente pertence à juventude revolucionária, aquela que não quer os ídolos do passado, ou pode ser confirmada a dominação mundial das tias do zap que compartilham fake news.
Colagem representativa do movimento de disseminação de Fake News por meio do WhatsApp / Arte: Vitória Floro
Para Manoel Morais, no Brasil, o caminho ainda é longo, as eleições de 2022 marcaram a disputa entre a ultra direita e o campo democrático de esquerda, em frente ampla com o centro. Nesse embate, a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre Jair Bolsonaro (PL) pode representar um avanço em termos das pautas progressistas no país. Porém, o espaço para o crescimento de uma onda revolucionária ainda parece ser pequeno.
“É importante o fortalecimento do campo democrático para que comece a ser feita uma redução do impacto do bolsonarismo no Brasil”, destaca o cientista político. Para ele, o avanço global do conservadorismo ainda pode perdurar, mas cabe à sociedade civil a união para tomar os meios democráticos de mudança social e criar um novo futuro.
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